Um Estado falhado


Para este governo, o Estado português não passa de um cobrador de impostos e taxas, falhando sempre aos cidadãos quando se trata de assumir a sua responsabilidade, mesmo quando está em causa algo tão elementar como assegurar que se possa circular em segurança nas vias públicas


Em 4 de Março de 2001 ocorreu a tragédia de Entre-os-Rios, em que a Ponte Hintze Ribeiro colapsou devido à excessiva extracção de areia do leito do rio Douro, arrastando consigo um autocarro e três carros, o que causou a morte a 59 pessoas. Nessa mesma noite, o ministro do Equipamento Social, Jorge Coelho, demitiu-se com uma frase que ficou célebre: “A culpa não pode morrer solteira.” E, efectivamente, seis dias depois, o governo de António Guterres, através da resolução do Conselho de Ministros 29-A/2001, de 9 de Março, assumiu imediatamente, em nome do Estado, a determinação e o pagamento de indemnizações aos herdeiros das vítimas, tendo cometido à Delegação da Ordem dos Advogados de Castelo de Paiva a responsabilidade de instruir e apresentar os respectivos requerimentos de indemnização.

Dezassete anos depois ocorre um acidente extremamente semelhante em Borba, com a queda da Estrada Nacional 255 junto a uma pedreira, por excessiva extracção do mármore que sustentava a estrada nesse local. Desse acidente resultaram pelo menos cinco mortos e a tragédia só não foi maior porque nesse momento não se encontravam muitos carros na via e o desabamento ocorreu de dia, permitindo aos condutores visualizar o que se estava a passar. Caso as circunstâncias fossem outras, o número de vítimas poderia ter sido muito maior.

Ao contrário do que se passou em 2001, a estratégia deste governo e dos seus apoiantes é desvalorizar a gravidade do ocorrido e passar as culpas para outros. Foi assim que o primeiro-ministro, António Costa, apareceu a afirmar que “ao contrário das outras circunstâncias, não há uma evidência da responsabilidade do Estado”, uma vez que “a estrada não é da gestão das infraestruturas do Estado desde 2005”. E daqui o primeiro-ministro retira que “o Estado é uma pessoa colectiva pública distinta dos municípios. Não me compete a mim estar a apurar se há ou não responsabilidade do município enquanto titular da estrada, mas também não me compete substituir-me ao município em eventuais responsabilidades”. Por esse motivo, o primeiro-ministro considera que não deve ser seguido o gesto de Jorge Coelho, embora lhe mereça uma “profunda admiração”, porque “as circunstâncias em que o fez não são comparáveis”.

Cabe salientar que as estradas de Portugal são geridas por uma entidade autónoma do Estado desde 1927, ano em que foi criada a Junta Autónoma das Estradas. Na altura do desastre de Entre-os-Rios, a Ponte Hintze Ribeiro era gerida pelo Instituto das Estradas de Portugal (IEP), criado pelo decreto-lei 237/99, de 25 de Junho, o qual expressamente o qualificava no seu art. 1.o, n.o 1 como um instituto público dotado “de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio”. Seria, por isso, também facílimo a Jorge Coelho e a António Guterres terem aparecido em 2001 igualmente com a patranha de que o governo não precisava de assumir qualquer responsabilidade em nome do Estado, uma vez que o IEP era uma pessoa colectiva pública distinta. Mas, apesar disso, o governo da altura assumiu as suas responsabilidade em nome do Estado – embora o presidente do IEP na altura apenas tenha apresentado a sua demissão vários dias depois de o próprio ministro o ter feito.

A estratégia de António Costa é, porém, sempre a de não assumir responsabilidades ao mais alto nível, procurando constantemente alijar as culpas para outros. O programa de descentralização é um bom pretexto para o fazer, como se pode ver no caso de ser cometida às autarquias a simples gestão de uma estrada, como neste caso ocorreu. Segundo o que os jornais informam, a IP – Infraestruturas de Portugal (na altura EP – Estradas de Portugal) assinou com os municípios de Borla e de Vila Viçosa, em Junho de 2005, um protocolo nos termos do qual essas duas autarquias passaram a gerir esta estrada. Assim, sem que nenhum condutor disso se aperceba, a Estrada Nacional 255 foi transformada por protocolo numa estrada municipal nesses dois concelhos, desresponsabilizando-se a Infraestruturas de Portugal de assegurar a sua manutenção e passando o Estado e o governo, tal como Pilatos, a lavarem as mãos do assunto se ocorrerem acidentes graves por falta de manutenção. Como as autarquias muito dificilmente têm orçamento quer para pagar os custos de manutenção das estradas, quer para suportar as elevadas indemnizações no caso de ocorrer uma tragédia, aquilo a que estamos a assistir não é a uma descentralização de competências, mas antes a uma descentralização da irresponsabilidade.

O dever básico de qualquer Estado é o de assegurar a justiça e a segurança dos cidadãos. Para este governo, no entanto, o Estado português não passa de um cobrador de impostos e taxas, falhando sempre aos cidadãos quando se trata de assumir a sua responsabilidade, mesmo quando está em causa algo tão elementar como assegurar que se possa circular em segurança nas vias públicas. Ora, um Estado que falha aos seus cidadãos só pode merecer o nome de Estado falhado.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção

das regras do acordo ortográfico de 1990