Ao entrarmos no séc. xxi, a consciência ecológica passou a ser um fator determinante no processo de planeamento urbano. A competição entre cidades à escala mundial já não se rege apenas por indicadores quantitativos de superioridade económica, mas por considerações qualitativas, entre as quais a elevada qualidade de vida proporcionada por um ambiente saudável. Tomados por uma radical propensão para a sustentabilidade, resolvemos demonizar o automóvel a motor de combustão e descobrimos nas bicicletas, trotinetes e veículos elétricos (VE) as soluções de deslocação urbana que irão salvar o mundo – especialmente se forem adotadas massivamente. Contudo, enquanto as cidades portuguesas enaltecem as suas iniciativas de mobilidade sustentável, o país continua a dinamizar consideráveis investimentos na construção de infraestruturas de transporte e logística que irão gerar níveis de poluição tão elevados que tornarão insignificante qualquer retorno ambiental gerado por bicicletas, trotinetes e VE: só na Área Metropolitana de Lisboa prevê-se a construção de um novo aeroporto (Montijo) e a expansão do existente (Portela), a ampliação de portos (Setúbal e Lisboa), um terminal de contentores (Barreiro) e ainda um terminal de cruzeiros (Lisboa). Segundo os dados da Agência Europeia do Ambiente (2014), as emissões específicas de CO2 (grama/passageiro-km) por modo de transporte na Europa eram lideradas pelos aviões (285 g/pkm), seguidos dos navios (245 g/pkm), automóveis de passageiros (104 g/pkm) e ferrovia (14 g/pkm). Em face destes números, deveríamos refletir acerca do nível de agressividade que hoje é dirigido aos automobilistas por resolverem trazer o seu veículo para o centro de uma cidade: deverá alguém que utiliza um automóvel com o intuito de deixar uma criança numa creche, ou o seu cônjuge num local de trabalho que não é convenientemente servido por transportes públicos, ser estigmatizado como um egoísta poluidor, enquanto o turista que chega de barco ou avião – meios de transporte campeões na emissão de CO2 – escapa a toda e qualquer censura ou escrutínio ambiental? Quando o combustível utilizado pelos navios de cruzeiro é cerca de 3500 vezes mais poluente do que o gasóleo utilizado por automóveis e camiões e a emissão de CO2 de um desses navios é equivalente a 83 680 automóveis (quatro navios correspondem a todos os veículos que entram em Lisboa diariamente – 370 mil), ou quando as emissões anuais de todos os veículos que circulam na capital (596,30 kt) correspondem a três vezes a emissão anual de CO2 proveniente das aterragens e descolagens do aeroporto de Lisboa (230,30 kt) – dados da Agência Portuguesa do Ambiente para 2015 -, ficamos com a sensação do quão desproporcional e hipócrita é a dimensão do ataque dirigido exclusivamente a quem diariamente usa o seu veículo por necessidade. Enquanto se demoniza o automóvel e seus utilizadores, ninguém questiona as políticas de ordenamento do território que incentivam opções bem mais poluidoras e pouco fazem para diminuir as deslocações pendulares ou melhorar o sistema de transportes públicos. Se a sociedade moderna dificilmente pode dispensar algumas infraestruturas altamente poluidoras (nomeadamente, portos ou aeroportos), não há porque arranjar bodes expiatórios nos veículos de quatro rodas e seus condutores. Estes já são suficientemente punidos pelo parasitismo omnipresente de parquímetros e portagens, bem como pelos elevados impostos incluídos no preço dos combustíveis.
Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental
Escreve quinzenalmente