“Vai ter copa, vai ter Carnaval, mas continua errado”, desabafa Tim Bernardes em “Tanto Faz”. Uma das canções centrais de “Recomeçar” é o retrato acabado do escritor de canções e da sua busca pelo apaziguar de relações entre o íntimo particular e o caótico universal. O Brasil é o palco do conflito, mesmo para quem usou a política como argamassa criativa. Este sábado, Tim Bernardes despe a alma e canções no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, a partir das 20h30. O concerto é um dos pontos-chave do Super Bock em Stock, que no próximo fim de semana ocupa diferentes salas da Avenida da Liberdade e perpendiculares.
Portugal está numa relação com Tim Bernardes. Como é que nasceu?
Da primeira vez que fomos [os Terno] a Portugal, encontrámo-nos com os Capitão Fausto. Tinha gostado deles e falámos pela internet. Sempre que vamos aí, estamos com eles. Há muitos [músicos] brasileiros conhecidos a viver em Portugal, como o Marcelo Camelo e a Mallu Magalhães. Nessas idas vamos conhecendo sempre mais gente. Desta vez, até vou ficar aí mais algum tempo para estar com as pessoas. É muito agradável e até surpreendente ser tão bem recebido.
Passa pela cabeça deixar o Brasil para viver noutro lugar?
(pausa) Passar, passa. A minha posição neste momento é esperar para ver o que vai acontecer. Sem ser alarmista. Gosto muito de estar aqui, mas desde que fui a Portugal pela primeira vez que sinto que é um lugar onde gostava de passar algum tempo. Morar mesmo, gosto muito do Brasil. É aqui que estão os meus amigos. Se puder não me ir embora, fico muito contente.
Sem querer ser alarmista, a eleição de Bolsonaro torna o quadro político preocupante.
Alarmante! E as eleições demonstraram–no. Para além das medidas de um governo autoritário, a atitude dos apoiantes do Bolsonaro, nas ruas, criou medo. Houve muitos confrontos e os artistas passaram a ser um alvo, por serem influenciadores. Muitos fizeram publicações a contestar Bolsonaro e aqueles que acreditaram que podia ser uma salvação para o Brasil generalizaram a classe artística [como um alvo a abater]. Como artista, fico preocupado. Se é só um sustinho ou uma perseguição, não oficial, mas da visão antipática que uma parcela da sociedade possa ter.
Aconteceu durante a ditadura do Brasil, na Inglaterra dos anos de Thatcher e até mesmo na América de Trump serem períodos de grande fertilidade criativa como reação à inquietude política. A revolta pode ser matéria-prima neste Brasil?
Sim. Eu e muitos colegas compositores escrevemos sobre aquilo que sentimos com intensidade. A política nunca me tinha chegado dessa forma. Nunca foi um assunto que tivesse focado, mas agora começa a gerar sentimentos que é inevitável que, por osmose, ela faça parte da criação. Nunca pensei dessa forma, nem na forma de fazer música, nem na forma de fazer política, mas o que aconteceu no Brasil dos anos 60 com a canção de protesto pode repetir-se. Escrevo sobre coisas que gosto e entendo, questões da psique humana e do afeto, mais do que levantar uma bandeira. No micro, pode ser a relação com alguém, mas no macro pode ser quem está no poder. Há que lidar com responsabilidade com isso.
O “Recomeçar” nasce de uma necessidade de comunicar com o mundo a partir da solidão?
Exatamente. Apesar de ter um lado de canções de amor, para mim é muito mais isso. É sobre uma busca pessoal e solitária e todos os desdobramentos que cabem nesse processo: as questões existenciais, desgostos amorosos, sentimentos de esperança e busca. Juntei as canções todas no disco porque são faces de uma coisa só.
Precisas de passar por essas trevas ou consegues pôr-te do lado do realizador que dirige o filme?
Nas canções mais viscerais ou íntimas, tenho de passar pelas experiências. Quando me ponho do lado do realizador, prefiro inventar histórias mais amalucadas. Não vou contar uma história normal de amor. N’“O Terno”, havia umas histórias meio doidas de sequestro. No lado da emoção, são coisas que sinto.
O álbum foi escrito nos intervalos d’“OTerno”?
Na verdade, este disco demorou muito tempo. A canção mais antiga é “Não”, Quando acabei de a escrever, senti logo que não era a cara d’“O Terno”. Era mais íntima. Pensei logo em guardá-la. E ao longo do tempo sempre houve canções assim. Quando me apercebi, já eram muitas canções no baú e todas falavam de solidão, intimidade ou busca. No momento do segundo disco d’O Terno (homónimo de 2014), compus a maioria das canções. Depois, vieram mais algumas que se encaixaram nessa família. Enquanto fazia coisas com O Terno, já sabia o que queria do disco. Como podia ser, os arranjos, a ordem e até o título, “Recomeçar”. Já tinha o disco na cabeça mas ainda me faltava a coragem para gravar, devido à proximidade com os temas. É um disco muito pessoal e não me sentia muito à vontade. E também por uma questão de tempo, porque estava sempre em viagem com O Terno. Quando percebi que ia ter um semestre mais calmo, marquei estúdio e gravei as ideias.
Só podia ser Tim Bernardes, não podia ser O Terno.
Sim, havia canções que só podiam ser minhas e outras que só podiam ser da banda. E há um caso ou outro em que as canções podiam encaixar dos dois lados. N’O Terno, temos um método de contraste: se há uma música mais profunda, a outra é mais leve; se uma é mais rock’n’roll, a seguinte é mais calma. No “Recomeçar” pensei bastante se iam funcionar canções todas do mesmo tipo.
E agora como fica a relação entre o Tim Bernardes e O Terno?
(ri-se) Tive de me desdobrar, mas tenho conseguido. Calhou ser num período em que queremos dar menos concertos, mas melhores. Dávamos muitos concertos em lugares pequenos no Brasil – uma agenda muito sentida – e não estávamos a tirar partido dos lugares maiores. Agora podemos dar um concerto num semestre numa capital do Brasil, mas é caprichadão. Acabou por ser bom. Está a ser possível conciliar. Quando acabei de gravar o “Recomeçar”, fiquei muito aflito porque esvaziei o meu baú. Tinha sempre canções guardadas e gastei tudo. Nessa aflição, acabei por escrever um disco que é o disco que estou a fazer agora com O Terno e que se aproxima do “Recomeçar”. Neste momento, são os meus dois focos.
Expor a intimidade em palco é ainda mais desafiante que em disco?
O que senti é que queria mais do que n’O Terno, que era reproduzir a sonoridade de um disco. Era uma vontade antiga, tal como a vontade de gravar um disco [a solo]. Queria fazer um espetáculo a solo em que se ouvissem mais a voz e as palavras, e menos os arranjos. Claro que existe uma preocupação com o timbre dos instrumentos – o meu técnico foi quem gravou o disco –, mas quero passar a sensação de estar no quarto a mostrar estas canções às pessoas. Foi assim que as escrevi, à noite, no quarto. Vou apresentar algumas canções d’O Terno, desta época, nas versões originais, e algumas versões. Há um grande cuidado com a luz, a vibração e o cenário.
Queres ver algum concerto no Super Bock em Stock?
Sei que os Capitão Fausto vão tocar e nunca os vi ao vivo. Quero muito ver porque já ouvi o disco montes de vezes e encontrei-me com eles. Tenho muita curiosidade para ver como funciona em palco. É uma banda com a qual sinto uma identificação como é O Terno no Brasil. É a mesma turma, idade e geração. O mesmo tipo de preocupações. É indie, mas tem público. Vejo o paralelo com muita curiosidade.