Quarto Minguante. Uma peça  quer-se para  três vezes

Quarto Minguante. Uma peça quer-se para três vezes


Três partes para quatro cenas. A conta que Joana Bértholo equilibrou numa folha de excel para o primeiro dos textos do Laboratório de Escrita para Teatro que o Teatro Nacional D. Maria II leva a cena, até 16 de dezembro, na Sala Estúdio


Diz Lara que há dois tipos de sábios. “Aquele que leu 100 livros e aquele que leu o mesmo livro 100 vezes.” E tomemos como exemplo este texto que, da assistência da Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria ii, havemos de percorrer três vezes. Não exatamente da mesma forma, porque vamos pelas luas: Lua Nova, o Quarto Crescente e a Lua Cheia, até ao Quarto Minguante. O final ou o início, um novo início. E tudo isto em quatro cenas. Quatro cenas simultâneas para uma peça em três partes que se desenrola como uma partitura. Eis “Quarto Minguante”, o primeiro dos textos do Laboratório de Escrita para Teatro do D. Maria II, que iniciou a sua quarta edição no mês passado. Da autoria de Joana Bértholo, escritora nascida em 1982 e uma das participantes na primeira edição. 

O desafio era novo – “Quarto Minguante” desenrola-se por uma folha de excel, como o escreveu Joana Bértholo, e assim o leu e encenou Álvaro Correia, a partir do convite da direção artística do teatro. 

Quatro cenas então, que se distinguem ao mesmo tempo que se baralham em palco num dispositivo milimetricamente desordenado. A avó que tem cancro e os netos, a mulher que se quer divorciar, o jovem preso, acusado de um número de crimes aos quais se perde a conta, um terapeuta e um divã. “O texto da Joana tem esta ideia de que existem três momentos sempre com esta ideia de que há quatro espaços diferenciados que, no fundo, partilham o mesmo espaço”, explica ao i o encenador. “Há sempre esta ideia de que ao mesmo tempo que muda o ciclo, o espaço se condiciona mais, uma espécie de maior esquizofrenia, de uma maior aceleração qualquer, como se se tentasse quase não dar pelos condicionamentos.”

“Quando já não se podia circular em casa de tão tenso que tudo se tornou”, compreenderemos depois pela carta-monólogo do único dos personagens capaz de encontrar um início naquilo que vem como fim. E importa lembrar as chaves para compreender esta teia: desencantamento, desencantar, reencantamento, todos a convergirem para o que será o significado de um quarto minguante. 

Conversas cruzadas Como o espaço, que aperta de ciclo para ciclo. “No segundo ciclo, o espaço já está mais condicionado e eles tentam continuar a fazer as coisas como estão habituados a fazer. É aí que a Joana [Bértholo] começa numa espécie de apropriação dos textos uns dos outros.” É o caos, aquele caos milimetricamente organizado. Como uma teia.

Diálogos ora paralelos ora cruzados, entre uma cena e a outra, e o realismo é o quê, afinal? E aqui há um corte. Um corte com a realidade que não deixa de estar presente, reconhecível. “Optámos por cortar com uma ideia de realismo dos objetos. Acabámos por criar uma espécie de alegoria sobre o estado do mundo.” O cancro, o divórcio, e mesmo assim o mundo cá dentro a continuar a ser melhor do que o que se passa no mundo para lá da janela. A fronteira, o muro que aqueles homens ao fundo vão construindo, a desgraça que se tornou história universal. Não importa já o lugar ou o tempo exato. 

“Há uma ideia que perpassa no texto todo e, de certa forma, é esse o motor que leva a Joana a escrever esta ideia: o ‘não sais porquê?’. Se não estamos bem numa situação, porque é que aceitamos e não tentamos modificar as coisas?” Por medo? O medo de que o que vier depois disso possa ser ainda pior? “A Joana escreveu o texto um bocadinho no rescaldo do que se viveu nos anos do governo anterior, do Passos Coelho. Havia uma espécie de apatia nas pessoas, uma espécie de apatia de ‘ok, não estamos bem, sabemos que isto está errado, mas não conseguimos reagir a isto’, que no fundo não se alterou muito.”

Tanto que, lua após lua, lá fora nada muda. Há sempre o muro, aquele muro que continua a ser construído. Sinal de que o mundo não caminha para um lugar melhor. “Os problemas só estão a agravar-se. Infelizmente, a realidade é muito esta. Basta vermos o que está a acontecer nos Estados Unidos, com todos aqueles migrantes a chegarem a uma fronteira que está barricada”, analisa Álvaro Correia. “Por isso mesmo é que, não falando das coisas de forma tão direta, a peça acaba por ter muita atualidade ao criar um imaginário em que revemos estas situações todas do mundo em que vivemos. Um mundo caótico, desconfortável, entrecortado, em que há hábitos constantes de estar tudo agarrado ao telemóvel.”

E se não calássemos? O telemóvel e a televisão. Que não funciona. E se não funciona não se arranja, é para comprar uma nova. “Onde está o comando da box?” Uma vez, e outra, e outra, até ao ato em que Lara fala. Porque o que Lara dizia no início não era Lara a falar, era alguém a reproduzi-la. “Uma personagem que é ‘muda’ mas que é uma espécie de fio condutor.” Conduzindo o olhar, atravessando cenas, terminando e iniciando ciclos. “A peça não tem protagonistas mas, se eu elegesse um, seria a personagem de Lara. É como se isto fosse uma espécie de processo mental dela, uma projeção mental. Daí esta ideia de que quando se começa, ela comece sempre no mesmo sítio. É ela que dá início aos ciclos, é ela que os termina também.”

Também assim a vê Joana Bértholo, como explica na entrevista que acompanha a folha de sala de “Quarto Minguante”, na Sala Estúdio até 16 de dezembro: “O fazer nada dela é o acontecimento mais potente em cena. O fazer dos outros gera ruído. Então, a peça tornou-se uma espécie de investigação sobre a lucidez. E também sobre a velocidade, o facto de nunca termos tempo. Era uma peça sobre nós, porque o Laboratório não foi só uma coisa artística, foi também uma coisa de afetos muito rica, ficámos mesmo uma pequena família. Aquele paralelismo que acontece na peça também é uma boa imagem de nós ao longo daquele ano, a ter conversas paralelas, a fazer textos paralelos. Há sempre vários níveis e alguma coisa tem de ser calada. Isto sou eu a perguntar: e se não calássemos?”