As manchas da minha vida


Sofro da doença de encontrar figuras em manchas da parede e de me fascinar pelas sardas iluminadas pelo sol de verão. Cheguei a ver Fidel Castro numa rocha e Jesus Cristo numa estação de comboios.


Sou o que se poderia chamar um interpretador de manchas. Uma atividade humana ao nível do lançar cartas ou desenhar mapas astrais, com a diferença de não lhe inferir nenhuma profundidade. Quando falo em interpretar, quero dizer que as manchas são borrões ou padrões aleatórios, o meu cérebro é que os transforma em figuras animais ou humanas absolutamente óbvias.

Daí que passo a vida a ver desenhos nas paredes, nos tetos, no chão, às vezes num relance, noutras, ao fim de uns minutos de espera por alguém, acabo a transformar a mancha de humidade de um canto mal iluminado numa qualquer ilustração alada ou numa gárgula meio desconjuntada.

Se tivesse um pouco que fosse de fé, ou me desse ao misticismo, seria muito propenso aos sinais divinos por todo o lado. Porque, não exagero, eu vejo perfis de Fidel Castro em pedras, girafas comendo as folhas mais altas das árvores em feios azulejos de casa de banho, querubins de Rubens em manchas de humidade de tetos. Uma vez cheguei mesmo a ver uma imagem de Jesus Cristo numa estação, mas descartei qualquer ideia de santuário para não perturbar a passagem dos comboios nem atrair muitos peregrinos – uma vez, na Argentina, alguém enxergou o rosto de Cristo no tanque de água de um telhado e foi um corrupio de gente.

Nunca me fizeram um teste de Rohrschach, daí que mantenha fechada a porta do meu cérebro à interpretação. Às tantas, ainda me calhavam aqueles desenhos que parecem mesmo dois macacos a fazerem amor e isso de certeza estragaria a minha reputação – ou, como se costuma dizer, ficaria manchada. Aos olhos de muitos. A meu ver, seria uma mancha a emprestar alguma qualidade a este homem sem qualidades que aqui se escreve.

Por falar em olhos, é curioso como a mancha ou mácula lútea é a zona oval da retina que corresponde ao ponto de maior definição visual. Isto é, a mancha ajuda-nos a ver com mais clareza.

Uma mancha no currículo dificulta-nos a carreira; uma mancha de nascença dá-nos personalidade, transforma-nos em únicos. Nada há mais bonito que as sardas de um rosto num dia de verão, um pontilhismo impressionista que transforma alguém numa tela onde, por sua vez, sou capaz de encontrar também desenhos, figuras. Novelo interminável.
Como se juntasse os pontos naqueles livros para crianças e descobrisse o cavaleiro da fraca figura lutando contra moinhos de vento, o fidalgo de La Mancha desaustinado pelos romances de cavalaria. Ou me aparecessem as linhas de Nazca, vistas de bem longe no céu para perceber a sua dimensão.

Se é certo que ter uma mancha no currículo não ajuda na procura de emprego, as manchas da experiência dão-nos a arte, são o caminho para a criação perene, a que nos sobrevive a todos. As manchas tornam-nos humanos e ser humano é a nossa transcendência, não esses deuses que inventamos para acalmar a coceira da mortalidade.

Tantos séculos a clamar a pureza como aspiração – e uma religião que gira em torno da virgindade e da Imaculada Conceição – e são as manchas que da lei da monotonia nos alevantam. É como aquela boutade de que as mulheres boas vão para o céu e as más para toda a parte. E isso estende-se a todos os géneros.

Até um banal edifício novo ganha personalidade com a patine dos anos, com as manchas da passagem das décadas. E os carros velhos, a seu tempo, tornam-se clássicos e as manchas de ferrugem transformam-se em medalhas de sobrevivência.

O Mancha Negra pode ser o vilão dos livros do Mickey, e Rohrschach o narrador de ideias extremistas do “Watchmen”, mas a mancha também é a parte impressa de cada página, daí que ambos tenham nascido da mancha boa de todos os livros, as mesmas onde Cervantes escreveu que “a liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens”.
E a mancha também é isso, um sinal da liberdade de errar, a liberdade de sermos humanos, e não um imaculado deus qualquer. Nesse aspeto, gregos e romanos encheram a cabeça de deuses carregados de defeitos, deuses que se vingavam, que matavam filhos, mesquinhos, temperamentais; manchas que os tornavam mais humanos na sua transcendência.

Uma das coisas que sempre me pareceram falsas no anúncio da Marlboro, daquele cowboy de rosto marcado por uma vida ao ar livre, quintessência da masculinidade de corda enrolada à volta do ombro, é que apesar de passar o tempo de cigarro pendurado dos lábios, os dentes continuavam imaculadamente brancos, nem um rasto do amarelo da nicotina.
São Tomás de Aquino dizia que as lágrimas de arrependimento lavavam as manchas da culpa. Sobre isso, não sei nada, descrente que sou desse poder mágico da penitência, mas estou quase convencido de que uma vez vislumbrei São Tomás de Aquino no padrão de cortiça que forrava o meu quarto de infância. Ou isso ou era o Espírito Santo por ele.


As manchas da minha vida


Sofro da doença de encontrar figuras em manchas da parede e de me fascinar pelas sardas iluminadas pelo sol de verão. Cheguei a ver Fidel Castro numa rocha e Jesus Cristo numa estação de comboios.


Sou o que se poderia chamar um interpretador de manchas. Uma atividade humana ao nível do lançar cartas ou desenhar mapas astrais, com a diferença de não lhe inferir nenhuma profundidade. Quando falo em interpretar, quero dizer que as manchas são borrões ou padrões aleatórios, o meu cérebro é que os transforma em figuras animais ou humanas absolutamente óbvias.

Daí que passo a vida a ver desenhos nas paredes, nos tetos, no chão, às vezes num relance, noutras, ao fim de uns minutos de espera por alguém, acabo a transformar a mancha de humidade de um canto mal iluminado numa qualquer ilustração alada ou numa gárgula meio desconjuntada.

Se tivesse um pouco que fosse de fé, ou me desse ao misticismo, seria muito propenso aos sinais divinos por todo o lado. Porque, não exagero, eu vejo perfis de Fidel Castro em pedras, girafas comendo as folhas mais altas das árvores em feios azulejos de casa de banho, querubins de Rubens em manchas de humidade de tetos. Uma vez cheguei mesmo a ver uma imagem de Jesus Cristo numa estação, mas descartei qualquer ideia de santuário para não perturbar a passagem dos comboios nem atrair muitos peregrinos – uma vez, na Argentina, alguém enxergou o rosto de Cristo no tanque de água de um telhado e foi um corrupio de gente.

Nunca me fizeram um teste de Rohrschach, daí que mantenha fechada a porta do meu cérebro à interpretação. Às tantas, ainda me calhavam aqueles desenhos que parecem mesmo dois macacos a fazerem amor e isso de certeza estragaria a minha reputação – ou, como se costuma dizer, ficaria manchada. Aos olhos de muitos. A meu ver, seria uma mancha a emprestar alguma qualidade a este homem sem qualidades que aqui se escreve.

Por falar em olhos, é curioso como a mancha ou mácula lútea é a zona oval da retina que corresponde ao ponto de maior definição visual. Isto é, a mancha ajuda-nos a ver com mais clareza.

Uma mancha no currículo dificulta-nos a carreira; uma mancha de nascença dá-nos personalidade, transforma-nos em únicos. Nada há mais bonito que as sardas de um rosto num dia de verão, um pontilhismo impressionista que transforma alguém numa tela onde, por sua vez, sou capaz de encontrar também desenhos, figuras. Novelo interminável.
Como se juntasse os pontos naqueles livros para crianças e descobrisse o cavaleiro da fraca figura lutando contra moinhos de vento, o fidalgo de La Mancha desaustinado pelos romances de cavalaria. Ou me aparecessem as linhas de Nazca, vistas de bem longe no céu para perceber a sua dimensão.

Se é certo que ter uma mancha no currículo não ajuda na procura de emprego, as manchas da experiência dão-nos a arte, são o caminho para a criação perene, a que nos sobrevive a todos. As manchas tornam-nos humanos e ser humano é a nossa transcendência, não esses deuses que inventamos para acalmar a coceira da mortalidade.

Tantos séculos a clamar a pureza como aspiração – e uma religião que gira em torno da virgindade e da Imaculada Conceição – e são as manchas que da lei da monotonia nos alevantam. É como aquela boutade de que as mulheres boas vão para o céu e as más para toda a parte. E isso estende-se a todos os géneros.

Até um banal edifício novo ganha personalidade com a patine dos anos, com as manchas da passagem das décadas. E os carros velhos, a seu tempo, tornam-se clássicos e as manchas de ferrugem transformam-se em medalhas de sobrevivência.

O Mancha Negra pode ser o vilão dos livros do Mickey, e Rohrschach o narrador de ideias extremistas do “Watchmen”, mas a mancha também é a parte impressa de cada página, daí que ambos tenham nascido da mancha boa de todos os livros, as mesmas onde Cervantes escreveu que “a liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens”.
E a mancha também é isso, um sinal da liberdade de errar, a liberdade de sermos humanos, e não um imaculado deus qualquer. Nesse aspeto, gregos e romanos encheram a cabeça de deuses carregados de defeitos, deuses que se vingavam, que matavam filhos, mesquinhos, temperamentais; manchas que os tornavam mais humanos na sua transcendência.

Uma das coisas que sempre me pareceram falsas no anúncio da Marlboro, daquele cowboy de rosto marcado por uma vida ao ar livre, quintessência da masculinidade de corda enrolada à volta do ombro, é que apesar de passar o tempo de cigarro pendurado dos lábios, os dentes continuavam imaculadamente brancos, nem um rasto do amarelo da nicotina.
São Tomás de Aquino dizia que as lágrimas de arrependimento lavavam as manchas da culpa. Sobre isso, não sei nada, descrente que sou desse poder mágico da penitência, mas estou quase convencido de que uma vez vislumbrei São Tomás de Aquino no padrão de cortiça que forrava o meu quarto de infância. Ou isso ou era o Espírito Santo por ele.