David Cameron ficará na história política inglesa como o jogador que, ao arriscar tudo numa aposta falhada, conseguiu, involuntariamente, dar início à saída do Reino Unido da União Europeia, à divisão do dito reino (depois de ter conseguido ganhar o referendo independentista na Escócia), dar origem a uma recessão económica e arrastar os tories para uma espiral suicida resultante da guerra entre hard brexiteers e soft remainers.
Cameron foi a causa eficiente, e Theresa May o instrumento de execução deste exercício. Antes do referendo de 2016, May fez campanha contra o Brexit. A cobiça do poder é fonte pródiga de contradições e aceitou ser primeira-ministra para executar um programa político contra o qual tinha combatido. Nesta tragédia britânica, o castigo divino tem chegado sob a forma de sucessivas demissões dos membros do gabinete que não se identificam com a prática de May, um “BRrexit In Name Only” (BRINO).
A conclusão, na quarta-feira, do acordo de desquite entre a UE e o Reino Unido acelerou o processo de fuga dos membros do gabinete que se posicionam para o pós–May. Não porque alguma alma para além dos negociadores do acordo já tenha conseguido ler e interpretar na íntegra as 585 páginas do texto. Mas a natureza da coisa “acordo” nunca seria de molde a contentar os propagandistas das maravilhas do Brexit, maravilhas que justificaram o resultado do referendo em 2016.
Do acordo do Brexit não jorrarão o leite e o mel prometidos pelos brexiteers e muito menos uma recuperação integral da soberania britânica: a seguir ao final de março de 2019, data do desquite, chegará um período de transição de 21 meses (que poderá ser prorrogado…) durante o qual o Reino Unido continuará integrado na união aduaneira e submetido aos poderes da Comissão Europeia e às decisões do Tribunal de Justiça, sem ter acesso ao direito de voto como Estado-membro. Esta solução garantirá a morte do acordo às mãos dos membros do Parlamento britânico, onde muito dificilmente haverá um número suficiente de deputados trabalhistas para apoiarem uma votação que teria como consequência a continuação de May como PM. Da parte dos hard brexiteers já começou a recolha de assinaturas para desafiar a liderança de May.
A antecipação das eleições é mais fácil de vender ao eleitorado do que a realização de um segundo referendo sobre o Brexit, que seria um desrespeito pela vontade dos eleitores expressa pela via da democracia directa. A leitura dos resultados das eleições antecipadas será feita como traduzindo uma vontade política que se sobreporá ao resultado do referendo de 2016. Arrumada a semântica das decisões dos eleitores em relação ao Brexit, sobra a questão política mais difícil: a escolha do futuro PM. Nem Corbyn é capaz de provocar um entusiasmo que gere uma maioria absoluta para os trabalhistas (como já viu nas eleições de 2017), nem pelos tories se descortina um candidato que suceda a May e galvanize um eleitorado farto de quatro governos tories de enfiada, desde 2010.
A UE agendou um Conselho Europeu extraordinário para 25 de Novembro, às 9 da manhã de um domingo, para aprovar o acordo a 27. Aqui por Xelas há quem se entretenha a coleccionar alguns doces que poderiam ser dados a May durante essa reunião, como cedências de última hora duramente negociadas pela PM. Seria preciso que May chegasse politicamente viva ao dia 25 de Novembro, o que, a fazer fé nas casas de apostas britânicas, é tudo menos certo.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990