De Serralves  ao MNAA – um apelo à Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto

De Serralves ao MNAA – um apelo à Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto


Considere-se um assunto bem menos efémero do que o das fotografias de Mapplethorpe: os Painéis de S. Vicente de Fora, tesouro nacional e obra-prima da pintura portuguesa


No passado dia 16 de outubro, João Ribas prestou declarações à comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, na sequência da demissão do cargo de diretor artístico do Museu de Serralves, que apresentara no prévio mês de setembro. Cerca de duas horas mais tarde, seguiram-se na mesma comissão as declarações de Ana Pinho, presidente do Conselho de Administração da Fundação de Serralves, na presença de outros membros da mesma administração.

Não enveredaremos pela análise detalhada de possíveis culpabilidades, singulares ou partilhadas entre a direção artística e a administração de Serralves, num processo que, tudo bem ponderado, nos parece de interesse menor para a vida cultural portuguesa. No entanto, com o explícito intuito de acentuar a menoridade da questão, resumamos o que parece ter estado em causa.

Na iminência da inauguração em Serralves de uma exposição de fotografia de Robert Mapplethorpe (1946-1989), organizada por João Ribas, este apresentou subitamente a demissão do seu cargo de diretor artístico, alegando ter havido censura por parte da administração, que se teria oposto à exposição não condicionada de algumas das fotografias previstas para a mostra.

Para o leitor menos informado, refira-se que Mapplethorpe foi um artista que cultivou o género da fotografia homoerótica e que em muito da sua obra se comprouve em chocar o espectador com imagens de cariz sexual explícito, centradas na exibição da genitália masculina e no relacionamento entre pares homossexuais. A arte de Mapplethorpe evoluiu dentro da cultura underground de Nova Iorque, mais particularmente dentro do submundo que alguém já apelidou de Gay Gotham. Muito do talento do fotógrafo resulta de ter conseguido transmitir a angústia do homossexual, obrigado que foi este a viver num netherworld de que só lentamente emergiria no decurso das últimas décadas – recorde-se que as relações homossexuais eram proibidas no Estado de Nova Iorque ainda em 1980. Contava então o fotógrafo 34 anos de idade e restava-lhe menos de uma década de vida, pois morreria de sida em 1989.

Tenho a perfeita convicção de que uma visita exaustiva à exposição Mapplethorpe na companhia de menores causaria o maior embaraço à grande maioria dos adultos. Confesso assim a minha maior compreensão pela atitude da administração de Serralves.

Passado 6 de janeiro de 2019, a exposição efémera será desmontada e quem se preocupará com a omissão de algumas poucas fotografias no conjunto de mais de uma centena e meia que estiveram expostas sem condicionantes em Serralves durante os meses precedentes? Assim, mereceria o “caso Mapplethorpe” ter subido à comissão parlamentar de Cultura? Mais, justificar-se-ia a cobertura jornalística “ao minuto”, bem como a transmissão em direto de parte das audições? Têm-se sérias dúvidas.

Em boa medida, as linhas acima prepararam o terreno para o apelo à comissão parlamentar de Cultura, Comunicação Juventude e Desporto que será feito nas linhas seguintes.

Considere-se então um assunto bem menos efémero do que o das fotografias de Mapplethorpe: os Painéis de S. Vicente de Fora, tesouro nacional e obra-prima da pintura portuguesa, que tem merecida posição de destaque na exposição permanente do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Ali, a obra é meramente atribuída a Nuno Gonçalves e datada de cerca de 1470; enganosamente, pois omite deliberadamente a inscrição autoral com a data de 1445, que aquele pintor colocou no pé do adolescente figurado no chamado Painel do Infante.

Esta inscrição foi essencialmente lida em 2002 pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Concordantemente, a análise às madeiras de suporte da pintura, feita em 2001 a pedido do Instituto Português de Conservação e Restauro, reforçou a plausibilidade da nova datação. No entanto, passadas mais de década e meia, o MNAA persiste em omitir uma informação que é a chave para a compreensão da pintura e para a elucidação do famigerado “Mistério dos Painéis”. As omissões, que assumem um cunho de gravidade suplementar pelo facto de se reportarem a um verdadeiro símbolo nacional, são repetidas amiúde perante milhares de estudantes portugueses, em visitas didáticas ao MNAA que assim resultam defraudadas.

Assim, não deverão tais omissões, que atentam à integridade científica e à boa prática museológica, merecer a atenção da comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto?

A 18 de dezembro de 2017, foi por mim endereçado ao ministro da Cultura um “Pedido para a constituição de uma comissão de estudo com o objetivo de analisar novos dados científicos referentes ao Políptico de S. Vicente de Fora”. Nesse pedido, que ficou sem qualquer resposta até ao presente, denunciava-se a situação de omissão científica atrás apontada. A relevância da questão resultou reforçada pelo envio pela Casa Civil do Presidente da República da minha exposição sobre o Políptico de S. Vicente de Fora ao gabinete do primeiro-ministro (ofício nº 6795, de 18 de maio de 2018). Este último gabinete deu por sua vez conhecimento da exposição ao gabinete do ministro da Cultura (ofício nº 4882, de 1 de junho de 2018). Tampouco levou essa chamada de atenção a qualquer resposta do ministro da Cultura ao pedido por mim formulado a 18 de dezembro de 2017.

Pena é, pois no pedido, além da denúncia da situação, propôs-se uma via de solução: a entrega à Academia Portuguesa da História (APH) da responsabilidade de constituir uma comissão – que poderia incluir peritos nacionais e estrangeiros – mandatada para apresentar ao organismo de Estado que a nomeasse um relatório cientificamente sustentado.

Não será inoportuno referir que nos Estatutos da APH – Academia cuja divisa é Restituet Omnia – estão consagrados, entre outros, os seguintes objetivos:

– “Estimular e coordenar esforços tendentes ao rigoroso conhecimento da História nacional, contribuindo assim para o progresso da Cultura e da Civilização”

– “Procurar servir de orientadora dos estudos históricos nacionais”

– “Cooperar em tudo o que respeita à inventariação e defesa do património histórico e documental da Nação, emitindo parecer sobre esta matéria sempre que lhe seja solicitado”

Talvez por isso mesmo, Marcelo Rebelo de Sousa tenha afirmado (6.12.2016), como Presidente de Honra que é daquela academia: “À Academia Portuguesa da História está confiada uma missão difícil porque pouco visível, mal compreendida num país que, confortado na sua antiguidade, nem sempre preza devidamente a sua História mas que, quando alertado, quando acicatado, sabe dar valor ao que é nosso, aos nosso antepassados, ao nosso património, às nossas coordenadas comunitárias mais significantes e mais duradouras.”

Por que se espera então para enfrentar com seriedade científica a inscrição no pé do adolescente? Com alta probabilidade seremos recompensados ao fazê-lo, pois a data de 1445 que nela figura, anterior em cerca de um quarto de século ao período de execução convencionalmente defendido na História da Arte Portuguesa, reforça o estatuto do políptico como peça excecional e inovadora no panorama da arte europeia de meados do século XV. A data de 1445 aconselha ainda a reinterpretação iconográfica da pintura, ao mesmo tempo que permite identificar com toda a plausibilidade entre os principais retratados os filhos de D. João I, aqueles mesmos que Camões designou de “Ínclita Geração”.

Este desafio, que nos é lançado a mais de cinco séculos de distância, é em tudo aliciante, pois só uma sociedade disposta a encarar o seu passado com abertura intelectual, utilizando com critério científico o contributo de novas tecnologias, pode aspirar legitimamente a um futuro de inovação e de progresso.

Aqui fica expresso o apelo à Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto para que se debruce sobre a exposição errónea – por inexplicavelmente omitir dados cruciais – do célebre Políptico de Nuno Gonçalves no MNAA. Sem desprimor de Serralves e de Mapplethorpe, não se descure o perene em favor do efémero.

 

Professor universitário