Assumir as diferenças na União Europeia

Assumir as diferenças na União Europeia


Os fundos comunitários, que até agora mudaram as infraestruturas do nosso país, todavia não alteraram substancialmente o perfil transversal do sistema produtivo e da competitividade


Uns dos aspetos mais surpreendentes que têm marcado a relação entre a Comissão Europeia e os Estados-membros é o transbordo das diferenças para a disputa pública sempre que sobrevém algum sinal de desafio às coordenadas de Bruxelas. Não se pode assim dizer que a diplomacia, o pragmatismo e o bom senso cumpram o seu papel. Com efeito, havendo no atual quadro internacional uma evidente tensão entre blocos mundiais, muito por força das políticas norte-americanas de desafio ao statu quo, bem andava a Europa comunitária se buscasse esbater focos de tensão interna que a enfraquecem e debilitam no quadro internacional.

O mais recente exemplo é o que se passa com a Itália; mas a revelação pública de que o governo português não apresentou orçamento credível visando o défice zero também tem ajudado a esta visão que aqui se projeta.

No que toca a Itália, Bruxelas exige ao governo que taxe com mais impostos os custos políticos do contrato democrático celebrado há poucos meses com os eleitores, não aceitando no orçamento de 2019 o défice de 2,6% quando, mesmo se fosse de 3%, ainda assim se continha dentro das imposições de Maastricht.

É justo conceder que desde o início deste decénio e da última crise do euro, por pressão dos credores, foi permitido à comissão aumentar o controlo dos orçamentos nacionais, como consequência de decisões do conselho de ministros e do Parlamento Europeu. Destas entidades pode dizer–se que, segundo os tratados, não lhes falta legitimidade formal para o efeito. Mas do que se trata aqui de averiguar é a legitimidade substantiva, que escasseia.

O que a comissão vem impondo, pode dizer-se, é a tradução de uma verdadeira marionetização dos governos nacionais, que ou cumprem as indicações e rasgam os compromissos eleitorais de que resulta a expressão da vontade popular; ou fazem como está a fazer o governo português, usando o método das cativações, que subtraem qualidade e investimentos primordiais aos serviços obrigatórios de interesse geral a prestar pelo Estado; ou, pior ainda, fazem como a França e a Alemanha em 2003, países que incumpriram o défice, entraram em confronto com a comissão e levaram o então presidente Durão Barroso a compor, com tolerância imposta, uma saída diplomática de condescendência.

Isto é, numa perspetiva de defesa e reforço da ideia europeia, parece não se perceber como a fragilização dos governos integrantes do espaço europeu, a pressão e as ameaças bruxelloises sobre a opinião pública nativa acabam por render réditos aos eurocéticos e até àqueles partidos pela Europa fora, de que são exemplo o PCP e o BE que, residindo na extrema-esquerda e integrando o suporte político do atual governo português, desejariam um “Portexit” ou o abandono do euro.

Aliás, suprema ironia é que o atual porta-voz da comissão e das imprecações aos Estados-membros em crise seja alguém que, enquanto ministro das Finanças do governo socialista francês, na presidência de Hollande, fez campanha contra as imposições de Bruxelas prometendo a rebelião, para hoje ser o mais encartado fundamentalista do “rigor orçamental”.

E disto se fará, se não houver mudanças, a entrada de outros países na área do populismo que conduziu ao Brexit, com eventuais outros exits na calha.

Aqui chegados, neste quadro entronca a reflexão sobre o posicionamento de Portugal perante a questão europeia e o debate que tarda no âmbito das próximas eleições para o Parlamento Europeu.

Portugal é integrante pleno da zona euro, funda as suas convicções europeístas num projeto de cultura, paz e história comum. Todavia, esta intervenção da comissão baseada numa errada primazia à salvaguarda exclusiva da moeda única, sem ponderação da legitimidade política dos governos e dos contratos eleitorais decorrentes das vicissitudes da democracia, peca por parcial, na medida em que faz tábua rasa das assimetrias de desenvolvimento no espaço europeu.

No centro do tsunami da última crise do euro chegou a circular internamente na CDU da sra. Merkel um estudo muito sumário sobre se não seria de aplicar a Portugal e outros países da chamada coesão a receita de espaços de exceção fiscal para investimento, modelo que esteve na base da explosão da economia chinesa, tendo como paradigma Zhu Hai, e depois se estendeu a outras áreas.

Porque a questão é esta.

Sempre se poderá dizer que esta “tensão criadora” à volta do orçamento e do défice é o custo mínimo a pagar pela construção de um projeto de vivência e convivência política, económica e social ímpar na história da Europa. Todavia, o problema vai mais fundo. Como se podem reduzir as tensões orçamentais por escassez de recursos nacionais sem que às assimetrias de desenvolvimento entre países não se possam opor condições básicas de atração de investimento que venham a gerar diferentes níveis de crescimento económico e de aproximação entre todos? É a crescer a 2% que, em 2030, Portugal estará muito diferente daquilo que é hoje?

Os fundos comunitários, que até agora mudaram as infraestruturas do nosso país, todavia não alteraram substancialmente o perfil transversal do sistema produtivo e da competitividade.

E quem não perceber as mudanças e reajustes necessários, permanecendo na posição cronicamente sufragante das orientações de Bruxelas, não estará a contribuir para a defesa dos interesses nacionais e de uma Europa mais prestigiada e próxima dos cidadãos europeus.

O imobilismo estratégico sobre esta matéria do PSD e do CDS não ajuda.

Valha-nos o que prefigura a Aliança quando, corajosamente, abriu portas a este debate na sua declaração de princípios.

 

Jurista

Escreve quinzenalmente

Escreve sem adopção das regras

do acordo ortográfico de 1990