Mais depressa se apanha um juiz justiceiro que um coxo. E se for mentiroso, o grau de probabilidade cresce exponencialmente. O juiz Sérgio Moro vai ser ministro. Melhor, superministro, que um paladino da justiça como ele não pode ficar só com uma pasta, tem de acumular. Sem hesitar desdizer-se e demonstrando que a justiça pode ser uma arma poderosa para tirar adversários do caminho quando se tem ambições políticas.
Há dois anos, numa entrevista ao “Estado de S. Paulo”, a primeira que dava depois de a Operação Lava Jato ter popularizado o seu nome no Brasil, Sérgio Moro garantia perentoriamente que a política não lhe passava pela cabeça: “Não, jamais. Jamais. Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política. Acho que a política é uma atividade importante, não tem nenhum demérito, muito pelo contrário, existe muito mérito em quem atua na política, mas eu sou um juiz, eu estou em outra realidade, outro tipo de trabalho, outro perfil. Então, não existe jamais esse risco.”
Isto não é um homem a dizer não, é um homem a garantir, enfatizar e excluir sobre qualquer pretexto que haja nele ambições políticas. O juiz Sérgio Moro não tinha dado muitas entrevistas antes, nem daria muitas depois. O ano passado, de passagem por Portugal para uma conferência no Estoril, onde foi recebido como uma estrela pop, Moro confirmava a sua aversão à política numa entrevista ao “Expresso”, mantendo-se enfático na sua visão de a política aos políticos, a justiça, aos homens do direito, quando questionado sobre se tencionava entrar na política, respondeu: “Já repeti várias vezes. Não existe nenhuma possibilidade.”
O que aconteceu, então, para que este homem declaradamente modesto (“satisfaço-me com pouco”), completamente empenhado no seu papel (“a vida de magistrado me dá satisfação profissional”) e avesso aos holofotes (“não preciso estar na ribalta”) pouco mais de um ano depois tenha aceite o primeiro convite que recebeu para deixar a justiça que tanto o satisfazia e enveredar por uma carreira para a qual se dizia sem vocação (“não tenho perfil profissional”, “fiz outra escolha de vida”)? Um homem que sublinhava, na entrevista ao “Estado de S. Paulo”, “acho que o mundo da justiça e o mundo da política não devem se misturar”.
Tanta convicção e à primeira oportunidade, pumba, ei-lo a saltar a cerca e a misturar os dois mundos como se todas as palavras ditas tivessem sido apenas pedaços de um guião ensaiado e bem interpretado! Sérgio Moro não precisou sequer de um período de nojo para dar o dito por não dito, aceitou o primeiro convite como se fosse a sua grande ambição. Aceitou um superministério da justiça e da segurança, com livres poderes para continuar a investigar a corrupção, o narcotráfico, sem se preocupar com os limites entre o poder político e o poder judicial, sem se preocupar com a coerência entre atos e palavras: “não existe um fato ou uma pessoa que vai salvar o país”.
Na verdade, Sérgio Moro é um político que acredita que vai salvar o país. Um político na pior aceção da palavra, desses que não olha a meios para garantir os fins.
A forma rápida como aceitou o convite, esquecendo num ápice tudo o que afirmou, reiterou, sublinhou com marcador de ética, é típica de um político que promete mundos e fundos, sabendo que para tantos mundos nunca haverá fundos. E agora que a campanha política chegou ao fim (com a particularidade de não ter tido necessidade de se sujar a fazê-la, permitindo-lhe manter esse estatuto de impoluto que pretende usar como trampolim), Moro pode revelar-se em toda a sua dimensão e não é bonito: o juiz justiceiro ganhou um superministério, agora vai assegurar experiência política para o currículo que vai levar ao Palácio do Planalto.
Não nos iludamos, desde a elefantíase do seu ego, o juiz já se vê como candidato ao Palácio do Planalto em 2022, para isso poderá contar com a relação próxima com o mais poderoso exército do Brasil quando se trata de destruir ambições alheias: o Ministério Público. Nada o irá travar. A partir do momento em que a Operação Lava Jato começou a ser investigada no seu gabinete atulhado de papelada em Curitiba, onde recebeu o “Estado de São Paulo” para a entrevista do “jamais” em 2016 – um ambiente austero, quase monástico, tão adequado aos cruzados como ele –, que Sérgio Moro sabe o diamante em bruto que tinha nas mãos.
A grande sombra para o seu projeto político já está atrás das grades: Lula. Falta agora garantir, nestes próximos quatro anos, que Bolsonaro vá, por erros próprios e investigações alheias, perdendo a aura de mito e chegue a 2022 tão desacreditado como Michel Temer para disputar a reeleição. O que nem parece difícil, tantas foram as promessas irrealizáveis, as incongruências e o despreparo. Além do mais, com a pasta da Justiça e da Segurança Pública, Moro garante armas contra quaisquer veleidades golpistas que o entorno do presidente possa vir a ter.
A campanha para as presidenciais de 2022 já começou e lançado em velocidade está um maratonista queniano que se encarregou de dar o tiro de partida ainda os outros atletas não estavam equipados (com exceção de Ciro Gomes, mas esse nem se percebeu se tinha começado a correr ou estava apenas a fazer birra porque os seus adversários não desistiram na prova anterior). O que importa se por causa da ambição de um homem se atropelam as regras democráticas: ele já é o juiz.