Os portugueses de Bloncourt


Em memória do fotógrafo que deixou um registo único da nossa História e um testemunho atual sobre a opressão e a xenofobia


“Percorri as regiões onde nasceram os grandes descobridores do mundo, Henrique, Vasco da Gama. Vi os sórdidos bairros de lata das profundezas de Lisboa. Segui a rota da emigração, vivi o encontro com os passadores clandestinos do Porto, subi os caminhos de Chaves, falei com o pequeno pastor com um casaco de palha. Saboreei a aurora nos Pirenéus, um gosto a inverno, respiração, angústia. Misturei-me nas longas filas de espera em Hendaia. Aqui, diante de cada um destes rostos, há Portugal e o seu meio século de obscuridade, miséria e opressão.” Gérald Bloncourt, o fotógrafo franco-haitiano que desapareceu esta semana, aos 91 anos, começa assim um dos seus textos sobre as imagens da vida portuguesa nos anos 60/70, que retratou primeiro nos “bidonvilles” de Paris e depois cá, atraído pelos relatos dos operários que, aos poucos, o foram deixando entrar nas suas vidas para um cálice de Porto.

Da sua sensibilidade e curiosidade de repórter, também ele então recém–chegado a França, ficou um arquivo com mais de 200 mil fotografias. Bloncourt, que deixou um blogue com muitos textos, contos e imagens que vale a pena ver, partilhava que foram poucos os que o abordaram depois de Abril para saber mais, para compor histórias familiares, mas também a história coletiva desses anos. História hoje ainda raiz de tanta desigualdade.

Em criança, Bloncourt entusiasmou–se por Portugal por causa do passado épico das Descobertas. Ao encontrar os primeiros operários portugueses, ficou impressionado com a sua habilidade, como que uma mestria herdada dos antepassados, mas ao mesmo tempo chegou a admitir que nunca poderia prever as condições de vida em que viria a encontrar os descendentes dos “fabulosos heróis” da sua infância. Ainda antes de documentar a vida portuguesa nos bairros mais pobres, percebeu como usar a câmara no combate contra a xenofobia, escreveu, para mostrar como eram as mulheres portuguesas e argelinas, os imigrantes, que tomavam conta das crianças francesas; e, os homens, a força por detrás das modernas construções de Paris. “Mostrava os seus rostos simpáticos, afáveis, que suscitam respeito. A qualidade dos seu esforço e a beleza dos seus gestos. Também os riscos que corriam. Procurava mostrar que fazemos todos parte da mesma sociedade e que devemos todos amparar-nos, aceitar-nos e estimar--nos.” 

Se a mensagem é mais do que atual, o registo único que deixou da nossa história recente, tantas vezes guardada a sete chaves cá dentro, merece homenagem. Quando poucos se interessavam, refez o caminho dos portugueses até França, viu como havia aldeias onde todos os homens tinham partido, como metiam a vida toda em malas de cartão e dormiam nos bancos ou no chão da estação de Hendaia. Recebeu, anos mais tarde, as primeiras notícias da revolução e regressou a Lisboa em maio de 1974, como se procurasse fazer as pazes com aquela sua imagem infantil de um povo predestinado a algo maior, pelo menos a uma vida melhor do que bairros miseráveis e colchões cheios de percevejos tão longe de casa. “Sim, filhos e filhas dos grandes descobridores, herdeiros de uma cultura universal, ainda não asseguraram por completo o vosso lugar no concerto das nações e por isso a fotografia é também a minha escritura”, lê-se no blogue.

Num testemunho publicado em 2011 no “Público”, Conceição Tina, a menina de seis anos captada por Bloncourt no bidonville de St. Denis com uma boneca nos braços, conta como demorou, mas fez as pazes com o seu passado. Também à conta da fotografia. “Não estive muito tempo em França. Foram apenas seis anos, mas é um período que – admito-o hoje – sempre quis esquecer. Não vale a pena fugir das palavras e o que eu sentia era vergonha”, contou à jornalista Patrícia Carvalho. “Ao descobrir a minha imagem, ao descobri-lo a si, percebi o quanto entende o seu trabalho como uma forma de denunciar o que está errado (…) Tomei consciência que é preciso falar. É preciso mostrar o que a política da época nos fez passar.” A Bloncourt, deixava um agradecimento. “Quero que saiba que a sua ‘petite portugaise’ já não tem vergonha do seu passado e é uma mulher feliz.” 

Naqueles anos saíram de Portugal um milhão e meio de portugueses, mais de 80% de forma clandestina. Família. Viajo para Chaves – não espero encontrar o pequeno pastor de Bloncourt, um rapaz a proteger-se do frio com um tosco manto de palha. Embora o ritmo não seja igual em todo o país, passam cada vez mais anos do Portugal de miséria. Mas a história, esta história, é dos nossos capítulos que vezes demais fica invisível. Mais do que devia, quando não queremos que os erros se repitam.

Jornalista

 

Escreve à sexta-feira


Os portugueses de Bloncourt


Em memória do fotógrafo que deixou um registo único da nossa História e um testemunho atual sobre a opressão e a xenofobia


“Percorri as regiões onde nasceram os grandes descobridores do mundo, Henrique, Vasco da Gama. Vi os sórdidos bairros de lata das profundezas de Lisboa. Segui a rota da emigração, vivi o encontro com os passadores clandestinos do Porto, subi os caminhos de Chaves, falei com o pequeno pastor com um casaco de palha. Saboreei a aurora nos Pirenéus, um gosto a inverno, respiração, angústia. Misturei-me nas longas filas de espera em Hendaia. Aqui, diante de cada um destes rostos, há Portugal e o seu meio século de obscuridade, miséria e opressão.” Gérald Bloncourt, o fotógrafo franco-haitiano que desapareceu esta semana, aos 91 anos, começa assim um dos seus textos sobre as imagens da vida portuguesa nos anos 60/70, que retratou primeiro nos “bidonvilles” de Paris e depois cá, atraído pelos relatos dos operários que, aos poucos, o foram deixando entrar nas suas vidas para um cálice de Porto.

Da sua sensibilidade e curiosidade de repórter, também ele então recém–chegado a França, ficou um arquivo com mais de 200 mil fotografias. Bloncourt, que deixou um blogue com muitos textos, contos e imagens que vale a pena ver, partilhava que foram poucos os que o abordaram depois de Abril para saber mais, para compor histórias familiares, mas também a história coletiva desses anos. História hoje ainda raiz de tanta desigualdade.

Em criança, Bloncourt entusiasmou–se por Portugal por causa do passado épico das Descobertas. Ao encontrar os primeiros operários portugueses, ficou impressionado com a sua habilidade, como que uma mestria herdada dos antepassados, mas ao mesmo tempo chegou a admitir que nunca poderia prever as condições de vida em que viria a encontrar os descendentes dos “fabulosos heróis” da sua infância. Ainda antes de documentar a vida portuguesa nos bairros mais pobres, percebeu como usar a câmara no combate contra a xenofobia, escreveu, para mostrar como eram as mulheres portuguesas e argelinas, os imigrantes, que tomavam conta das crianças francesas; e, os homens, a força por detrás das modernas construções de Paris. “Mostrava os seus rostos simpáticos, afáveis, que suscitam respeito. A qualidade dos seu esforço e a beleza dos seus gestos. Também os riscos que corriam. Procurava mostrar que fazemos todos parte da mesma sociedade e que devemos todos amparar-nos, aceitar-nos e estimar--nos.” 

Se a mensagem é mais do que atual, o registo único que deixou da nossa história recente, tantas vezes guardada a sete chaves cá dentro, merece homenagem. Quando poucos se interessavam, refez o caminho dos portugueses até França, viu como havia aldeias onde todos os homens tinham partido, como metiam a vida toda em malas de cartão e dormiam nos bancos ou no chão da estação de Hendaia. Recebeu, anos mais tarde, as primeiras notícias da revolução e regressou a Lisboa em maio de 1974, como se procurasse fazer as pazes com aquela sua imagem infantil de um povo predestinado a algo maior, pelo menos a uma vida melhor do que bairros miseráveis e colchões cheios de percevejos tão longe de casa. “Sim, filhos e filhas dos grandes descobridores, herdeiros de uma cultura universal, ainda não asseguraram por completo o vosso lugar no concerto das nações e por isso a fotografia é também a minha escritura”, lê-se no blogue.

Num testemunho publicado em 2011 no “Público”, Conceição Tina, a menina de seis anos captada por Bloncourt no bidonville de St. Denis com uma boneca nos braços, conta como demorou, mas fez as pazes com o seu passado. Também à conta da fotografia. “Não estive muito tempo em França. Foram apenas seis anos, mas é um período que – admito-o hoje – sempre quis esquecer. Não vale a pena fugir das palavras e o que eu sentia era vergonha”, contou à jornalista Patrícia Carvalho. “Ao descobrir a minha imagem, ao descobri-lo a si, percebi o quanto entende o seu trabalho como uma forma de denunciar o que está errado (…) Tomei consciência que é preciso falar. É preciso mostrar o que a política da época nos fez passar.” A Bloncourt, deixava um agradecimento. “Quero que saiba que a sua ‘petite portugaise’ já não tem vergonha do seu passado e é uma mulher feliz.” 

Naqueles anos saíram de Portugal um milhão e meio de portugueses, mais de 80% de forma clandestina. Família. Viajo para Chaves – não espero encontrar o pequeno pastor de Bloncourt, um rapaz a proteger-se do frio com um tosco manto de palha. Embora o ritmo não seja igual em todo o país, passam cada vez mais anos do Portugal de miséria. Mas a história, esta história, é dos nossos capítulos que vezes demais fica invisível. Mais do que devia, quando não queremos que os erros se repitam.

Jornalista

 

Escreve à sexta-feira