Kafka no Tribunal Constitucional


O Presidente da República não solicitou uma única vez a fiscalização preventiva da constitucionalidade desde o início do seu mandato, tendo referido que prefere optar pelo veto político


A fiscalização da constitucionalidade das leis pelos tribunais corresponde a uma velha tradição do sistema jurídico português. Foi introduzida pela primeira vez em Portugal pela Constituição de 1911, tendo a partir daí permanecido sempre nas Constituições portuguesas. Mesmo a ditadura de Salazar não se atreveu a prescindir da fiscalização da constitucionalidade das leis, ainda que a mesma tivesse pouca relevância prática em virtude do receio dos tribunais de desafiar o poder político de então.

Com a Constituição de 1976 e a plena consagração de um regime democrático, ficou definitivamente estabelecida a fiscalização da constitucionalidade das leis, quer a nível abstracto, quer a nível concreto. Inicialmente, a fiscalização abstracta da constitucionalidade ficou a cargo do Conselho da Revolução, mas a partir da revisão constitucional de 1982 foi criado um tribunal especializado para esse efeito: o Tribunal Constitucional. Este tem sido o tribunal incumbido da fiscalização abstracta da constitucionalidade, quer preventiva, quer sucessiva. Já a fiscalização concreta da constitucionalidade compete a todos os tribunais ainda que, por via da existência de um recurso obrigatório, o Tribunal Constitucional tenha sempre a última palavra sobre as decisões relativas à constitucionalidade das leis. A fiscalização da constitucionalidade das leis foi considerada tão importante pelos constituintes de 1976 que a estabeleceram como limite material de revisão constitucional. E, efectivamente, o Tribunal Constitucional tem assumido um peso muito relevante no actual sistema político, defendendo muitas vezes os cidadãos contra os arbítrios do poder. Recordem-se a declaração da inconstitucionalidade do corte de subsídios com que o anterior governo quis penalizar os funcionários públicos e a declaração de inconstitucionalidade das taxas de protecção civil, que algumas câmaras quiseram abusivamente cobrar aos seus munícipes.

Só que esse papel do Tribunal Constitucional encontra-se presentemente ameaçado pelo facto de os órgãos a quem compete suscitar a fiscalização da constitucionalidade das leis não o estarem a fazer. O Presidente da República não solicitou uma única vez a fiscalização preventiva da constitucionalidade desde o início do seu mandato, tendo referido que prefere optar pelo veto político. E o mesmo fez a actual provedora de Justiça, que recentemente explicou em entrevista ao “Expresso” que acha preferível recomendar ao poder político que altere uma lei do que solicitar ao Tribunal Constitucional que a anule. O problema é que os vetos políticos não são definitivos, podendo as leis ser reconfirmadas. E as recomendações são irrelevantes, de nada servindo para proteger os cidadãos perante leis inconstitucionais. O Tribunal Constitucional, em virtude desta posição daqueles a quem incumbe a iniciativa de desencadear a fiscalização da constitucionalidade, tem sido assim impedido de apreciar várias leis que suscitam sérias dúvidas de constitucionalidade.

Quanto à fiscalização concreta da constitucionalidade, que qualquer cidadão pode desencadear nos tribunais, também esta está a ser altamente restringida, quer pelo imenso tempo que os processos demoram até atingir a última instância, quer pelas elevadas custas que o recurso para o Tribunal Constitucional implica, e de onde resulta que a ele só têm acesso os muitos ricos ou os indigentes. Lamentavelmente, em Portugal nunca se instituiu o recurso de amparo, permitindo aos cidadãos recorrer directamente ao Tribunal Constitucional.

Na sua novela “Perante a lei”, que depois introduziu no romance “O Processo”, Franz Kafka representa a justiça como um porteiro que guarda uma porta pela qual não deixa ninguém entrar. Há alguém que lhe pede acesso, mas o porteiro diz-lhe que tem de aguardar. O indivíduo então aguarda quase até morrer junto dessa porta, altura em que desiste e se vai embora. Mas antes pergunta ao porteiro porque é que, em todos os anos que esperou ali, mais ninguém quis entrar por aquela porta. O porteiro responde-lhe que a porta estava ali apenas para ele e que, agora que ele se ia embora, iria ser definitivamente fechada e mais ninguém entraria. O Tribunal Constitucional também tem hoje as portas fechadas. Era bom que elas voltassem a abrir–se para todos os portugueses que necessitam de justiça constitucional.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990