Brasil. A resistência não vai esperar por um novo dia

Brasil. A resistência não vai esperar por um novo dia


O Brasil dividido não se uniu depois dos discursos de vitória e derrota das eleições de domingo. O grito foi de resistência nas redes sociais e já hoje vai começar na rua


Na noite de domingo, não foi preciso olhar para o relógio para saber que tinha chegado a hora de os resultados serem anunciados. Sete da tarde em ponto e vem o primeiro buzinão. Nos passeios, olhos colados nos telemóveis e não é preciso fazer o mesmo para adivinhar no que deu. Numa paralela, há os que correm de bandeira do Brasil em direção à Av. Paulista e há os que fazem o movimento inverso. Abraços de tristeza, as primeiras lágrimas, que seriam também de jornalistas, mas que depressa viram grito de resistência. #Elenão contra #elesim, nas ruas e das janelas dos edifícios.

Em São Paulo, os apoiantes de Bolsonaro, nos dias anteriores cada vez mais discretos perante a tendência de subida de Fernando Haddad nas sondagens, voltavam a gritar, a pulmões abertos: “Bolsonaro!” E “fora PT”. Perante a festa de meio Brasil mas de menos de meia São Paulo, um grupo de adolescentes trans que tinha saído à rua em grupo vocifera “fascista”. Outro, de três garotas descendo a rua aos saltos, quase em festa, como se o resultado tivesse sido outro: “Ele não, ele nuncaaaa! Ele não, ele não, ele não, ele não!”

Manhã seguinte: o dólar sobre e, escrevem os jornais, “a Bolsa opera perto da estabilidade”. Na “Folha de São Paulo”, a jornalista que deu a notícia do “caixa 2” de Bolsonaro assina uma entrevista com Steve Bannon, ex-assessor de Trump que, sem confirmação, diz ter estado ligado à campanha de Jair Bolsonaro, interessado no Brasil: “Capitalismo esclarecido e populismo de Bolsonaro aproximarão o Brasil dos EUA, diz Steve Bannon”. Sem surpresa, Ciro Gomes, do PDT, o terceiro mais votado na primeira volta que, contra todas as pressões da esquerda, não apoiou a candidatura de Haddad, posiciona-se já para 2022. Depois, “Globo retrata Bolsonaro com isenção, enquanto Record demonstra boa vontade”, “Zezé, Regina Duarte e outros famosos celebram a eleição de Bolsonaro”, “Pablo Vittar e outros artistas falam em paz e resistência”.

Nas ruas, regresso ao dia a dia, como se nada tivesse acontecido. “Vamos ver no que isso dá”, diz Antônio Carlos, 63 anos, aposentado, que durante 40 anos foi funcionário público. Motorista de político. “Quando foi o Collor foi assim, depois todo o mundo se arrependeu. Muita gente tirou já o dinheiro do banco, com receio.” Antônio Carlos votou Bolsonaro, ainda assim. “A minha mulher é toda Haddad e já me disse hoje ‘vocês estão gritando Bolsonaro, quero ver daqui a uns meses’.”

Vem um vendedor ambulante pelo meio do trânsito parado, vendendo panos. Desconto de 10%. “Está vendo? Até nos panos ele ganha?” São panos de louça de apoio a Jair Bolsonaro. Do outro lado, igual. Da Vila Mariana, o Lobo Centro Criativo anuncia a reposição do stock das camisetas “Ele Não”. É um dos pontos de venda dos produtos da Peita, nascida a 8 de março de 2017, na Marcha Mundial das Mulheres – 8M, em Curitiba, onde continua preso Lula.

Para a semana, haverá novas das agora esgotadas “Lute como uma garota”, popularizadas durante a campanha pela candidata a vice Manuela d’Ávila. “Hoje estão saindo muitas camisetas”, responde-nos Gisele pelo Facebook. 

“A resistência continua!” Nas redes sociais, #somosresistência multiplicado por milhares de posts. “Ninguém solta a mão de ninguém”, numa das imagens mais reproduzidas e partilhadas. Disse no discurso de derrota a candidata a vice que a tristeza tem que virar resistência, e é isso que se adivinha. Como canta faz já muito tempo Chico Buarque, numa das canções desde domingo à noite mais partilhadas: “Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão, não/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu// Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão/ Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar/ O perdão […] Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai se dar mal/ Etc. e tal/ Lá lá lá lá laiá”.

Mesmo que no primeiro dia o silêncio impere nas ruas, o Brasil é um país que está tudo menos unido. O discurso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, pode até ter sido de apelo à união, na defesa do cumprimento da Constituição e da Democracia. Mas o que está para trás não se esquece. E agora que venceu, mas sem os votos de quase metade dos brasileiros, resistência é o que vai ser e sem demora. Para hoje, o Povo Sem Medo tem já marcados uma série de protestos para vários horários ao final da tarde por todo o país. “Vai ter resistência” é o mote geral, o resto são pequenas variações. Fortaleza, Rio de Janeiro, Recife, Brasília, Porto Alegre, São Paulo.

“Negra, nordestina e pobre” No protesto de São Paulo encontraremos, se der, Nady Oliveira. Atriz do Rio de Janeiro, por uns dias em São Paulo, que nos disse: “Sou negra, sou nordestina, sou pobre. Vim da periferia e vi todos os avanços durante o governo do PT. Independentemente de qualquer crítica que a gente tenha, foi um governo que, direta ou indiretamente, mudou a minha vida e a vida de todo o mundo ao meu redor. A gente foi para um outro lugar e é impossível não ter esse olhar crítico para entender o que o governo fez.”

Nady fala deste momento que o Brasil vive como um momento de desespero mesmo. “A gente está com medo e o medo aprisiona. A gente pensa a História e vê que ela primeiro se passa como tragédia e depois se repete como farsa. Essa ascensão do fascismo que está acontecendo no mundo já aconteceu antes e está acontecendo de novo e a gente não está tendo um olhar crítico para isso. O Brasil é um país muito desigual. Onde os negros são maioria e são segregados. Estou aqui para gritar e lutar a cada dia por isso.” Lembra depois como nos anos em que o PT esteve no poder “triplicou o número de negros” nas universidades. “Coisa que não existia.” Que para ela não chegou a existir, porque “ninguém na família tinha feito”, porque continua a haver desigualdade. Fez outros cursos. Muitos. “Estou sempre a estudar.” 

De volta ao PT, ao país que queria que o Brasil pudesse voltar a ter sido por estes quatro anos que serão agora de Jair Bolsonaro, lembra ainda como “as mulheres foram empoderadas com projetos sociais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, que lhes deram a possibilidade de ter uma casa, de ter uma renda [rendimento], tudo no nome dela”. E afirma: “Esses avanços sociais que a gente teve não foram naturais, foram um projeto de governo. Eu acredito nisso, acredito na educação e acredito que diminuindo a desigualdade social a gente diminui a violência e aumenta a expectativa de vida para todo o mundo. A gente quer ser feliz.”

Perante o resultado deste domingo, vê tudo isso ameaçado. Ela que é negra, pobre e nordestina, como diz. E que agora tem medo. “Tenho muito medo. Não quero morrer, quero viver. A gente já vivia num beco sem saída com esse machismo. A gente tem o direito de viver. Não está errado ser você, não está errado ser eu, o que está errado é querer impor.