Da ditadura na América


Muitos Estados têm copiado no todo ou em parte a Constituição americana, desde logo os vizinhos dos EUA. Para que uma Constituição viva não basta copiá-la, como a História tem provado e o futuro se prepara para repetir


Os EUA são uma terra de milagres. Daqueles que passam na televisão e são organizados em igrejas com o mesmo número de lugares sentados dos estádios de futebol do Euro 2004. Mas também de milagres de convivência política, milagres paridos com sabedoria a partir do milagre original, o de Filadélfia, o milagre da convenção que em 1787 negociou e redigiu a Constituição. A sageza dos pais fundadores tem permitido, mais do que a democracia na América, que tanto surpreendia os europeus de antanho, a começar pelo visconde de Tocqueville, evitar a ditadura na América. Nos seus piores momentos, a vida política nos EUA permitiu sempre o recuperar das liberdades fundamentais, a eleição livre e disputada dos representantes do povo, a separação de poderes e o controlo dos abusos por parte de qualquer um deles. A Guerra da Secessão, a crise de 1929, o macarthismo, a repressão do movimento dos direitos cívicos, a espiral de loucura de Nixon não derrotaram a democracia, antes acabaram por fortalecê-lo.

A chegada de Trump ao poder só tornou evidentes os mecanismos de controlo do poder pelos diversos poderes. A 6 de Novembro, a renovação de um terço do Senado e de toda a Câmara dos Representantes refreará os ímpetos do presidente eleito dois anos antes. Será assim com Trump, foi assim com quase todos os predecessores. O mecanismo é simples no funcionamento e eficaz nas consequências: obriga o presidente de turno a negociar com a “oposição” e a construir com o Congresso soluções políticas aceites pela maioria dos eleitores. Haverá percalços, desde logo pelo Supreme Court, onde há dois juízes indicados por Bill Clinton que atingiram já uma provecta idade e cuja futura substituição acentuará o pendor conservador da nova composição do tribunal, actualmente num equilíbrio de 5-4 entre nomeações feitas por presidentes republicanos e democratas.

A democracia na América vive da (boa) prática constitucional e sobrevive pelo “sonho americano”, pela possibilidade de manter uma democracia política na ausência de Estado social, algo de absolutamente impensável no continente europeu.

Não deixa de ser uma cruel ironia que o regresso da ditadura à América possa acontecer por causa de uma tentativa coxa e incompleta de criar um esquisso de Estado social no Brasil. As eleições do próximo domingo serão o culminar de uma feroz luta de classes entre uma classe média emergente que se quer “americana”, que dispensa uma tentativa de Estado social e que quer um Estado mínimo, que garanta a segurança e combata a corrupção; e uma classe pobre que o PT tirou da miséria abjecta a golpes de apoios sociais alimentados com os rendimentos do petróleo. O PT, cuja gestão do ciclo económico nos governos de Lula da Silva também contribuiu para o crescimento da classe média, não soube conquistar a classe média. Não soube o PT nem soube nenhum outro partido, deixando uma maioria socioeconómica disponível para votar em Bolsonaro, à margem de qualquer partido. A atomização do sistema partidário brasileiro e a mercantilização dos respectivos mandatos (vendidos à melhor oferta qualquer que seja a orientação política ou ideológica) marcam a diferença com os EUA, onde os dois partidos representam eleitores, e não os eleitos.

Reflectindo sobre o Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville sentenciava: “A história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias.” Nem a originalidade nem a cópia garantem a qualidade.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990