Annie Demerjian. “A morte tornou-se familiar e já não nos impressionava”

Annie Demerjian. “A morte tornou-se familiar e já não nos impressionava”


Passou pelo cerco de Alepo, sentiu as bombas em Damasco , mas nunca pensou em fugir:  “Foi uma experiência profunda”


Annie Demerjian prefere manter-se longe das questões políticas da Síria. O seu trabalho é pastoral, de ajuda sobretudo espiritual num país onde 10% dos atuais 18,3 milhões de habitantes são cristãos – não lhe cabe meter foice em seara alheia. Sobre ataques químicos, garante que nunca presenciou nenhum nos quase oito anos que dura o conflito, e não sabemos se é resposta para se manter longe de política ou sincero desconhecimento. Do que fala, sim, é da experiência terrível da guerra, das noites inteiras de vigília, em orações intermináveis, sem saber onde a próxima bomba cairia. Fala também dos três milhões de crianças que nasceram sem conhecer outra coisa que não sejam tiros e bombas. Uma geração inteira a precisar de apoio psicológico para superar o trauma.

A reabertura da fronteira de Nasib, entre a Síria e a Jordânia na semana passada é um sinal de que a guerra síria está quase no fim?

Sim, em muitas zonas da Síria a guerra já terminou. No sentido em que não há bombardeamentos, nem combates. Ainda que haja em algumas zonas, rezamos a Deus que também aí venha a terminar em breve.

O que sente por estar a chegar ao fim um conflito que parecia interminável e que já vai com quase oito anos de conflito? 

Estou muito contente por ver as pessoas que passaram anos das suas vidas em situações muito difíceis a poder regressar ao seu país, à terra onde viviam e para junto dos seus. 

Quando os protestos começaram em 2011, em sequência da Primavera Árabe, passou-lhe pela cabeça que haveria uma guerra civil no seu país e que duraria tanto tempo?

Ninguém pensava que isso pudesse acontecer porque a Síria era um país pacífico. Ninguém estava à espera de uma guerra. A vida era normal e pacífica. Quando o conflito começou foi um choque para nós. Em 2012, quando começou em Alepo, eu estava lá, foi muito doloroso ver tudo o que estava a acontecer. Chegávamos a perguntar se tudo não passava de um pesadelo. O que se estava a passar com a Síria? 

Como é viver num país em guerra? Sente-se a guerra todos os dias ou só quando se é diretamente afetado, quando os combates estão próximos ou as bombas explodem perto?

Durante a guerra, especialmente em Alepo, o tempo era muito duro para todos. Vivíamos para cada dia, cada momento, muitas noites sem dormir, devido aos bombardeamentos e aos combates. Por vezes, durante o dia, tínhamos de fugir para casa e esperar. As crianças não iam à escola, as pessoas não iam trabalhar. A vida quotidiana estava marcada pelo medo. Eu bem via quando as famílias enviavam os seus filhos para a escola o medo que sentiam no coração, por os deixar ali, sem saber se estariam protegidos ou não. Vivíamos numa mescla de emoções, entre o medo e o seja o que Deus quiser.

Sentiu-se desesperada algumas vezes? 

Raramente, mas, sim, algumas vezes senti-me desesperada. É normal, especialmente quando perdemos muitas pessoas que conhecíamos, que conhecíamos muito bem, amigos queridos. Perguntava-me ‘para onde vamos neste futuro incerto?’, ‘o que é nos vai acontecer a seguir?’. Foram tempos especialmente duros. Nessas alturas, a comunidade em que vivíamos dava-nos força, ajudávamo-nos uns aos outros. Lembro-me de uma noite em que os combates eram especialmente ferozes e todos nós, sem combinarmos, saímos dos nossos quartos e fomos para um abrigo e juntos começámos a rezar. É isso que nos dá força, ter uma comunidade de irmãs e cada uma diz ‘estou aqui para o que for preciso’. Não foi fácil. Quando me lembro do que aconteceu, as dificuldades que passámos – sem eletricidade, sem água, por vezes sem comida -, vem-me à cabeça a pergunta: ‘Como é que eu consegui aguentar tudo isto?’ Foi a graça de Deus que nos fortaleceu.

Sentiu a sua vida em risco alguma vez? Um momento em que pensou ‘daqui não saio com vida’? 

Muitas vezes. Não só a minha vida, como a de todos os outros que estavam à minha volta. Andas pela rua e não sabes se a próxima bomba vai cair em cima de ti ou se os snipers te escolhem para alvo. Na escola, também, enfrentámos muitos perigos com as nossas crianças. Eu e as outras irmãs tivemos de consertar as janelas do convento muitas vezes. Tanto no convento em Alepo, como em Damasco. Antes da libertação de Ghuta Oriental, um míssil atingiu o pátio do patriarcado e a explosão estilhaçou todos os vidros, por sorte, nenhuma de nós estava naquela zona na altura, quem estivesse teria morrido. 

Mas houve algum dia em que achou que era mesmo o último da sua vida? Que era o fim?

Sim. Houve uma semana que foi pesada. Os mísseis explodiam por toda a Alepo e lembro-me que nos sentámos numa sala sem saber o que ia acontecer. Mas, sabe, como vimos tanta morte – porque todos os dias havia morte no nosso quotidiano -, a morte tornou-se familiar e já não nos impressionava: guerra, mísseis, pessoas a morrer, ok, é com isto que temos de viver.

São muitas as crianças que nasceram na Síria nestes mais de sete anos de guerra, três milhões de crianças que só conhecem o que é viver num país em guerra. O que acontecerá a esta geração que está agora a crescer na Síria?

Como referiu, nestes oito anos nasceram três milhões de crianças que só viveram com a guerra, que só experimentaram a violência, a morte e perderam uma parte importante da sua vida, a possibilidade de crescerem como crianças. Muitas delas sofrem de traumas psicológicos. Uma família disse-me que os dois filhos se escondiam debaixo de uma cadeira ou atrás do sofá sempre que ouviam uma bomba ou um míssil. Uma reação que mostra a tensão em que vivem. Temos muito trabalho pela frente no que diz respeito à educação para poder dar às nossas crianças algo do que perderam nestes anos de guerra. Não é fácil, não estamos aqui a lidar com uma noite de pesadelo e a seguir viramos a página, vamos precisar de anos e anos de trabalho. A Síria é um país com enormes feridas, não podemos dizer, assim que acabar a guerra, que está tudo bem daqui para a frente. A Síria precisa de tempo para recuperar das feridas, o mesmo se passa com as crianças. A prioridade das prioridades é a educação e uma educação a tempo inteiro, algo que muitas escolas não têm, as que têm, porque muitas crianças nem escola têm. Graças a Deus que a situação está muito melhor agora e, por isso, é preciso apostar na educação, em escolas a tempo inteiro e muitas atividades que possam libertar a tensão do coração das crianças. Já há muitas escolas na Síria que o estão a fazer. Em Alepo, os franciscanos abriram um centro para receber crianças traumatizadas e através da pintura, da música, do teatro procuram aliviar-lhes a tensão. Em Damasco, as irmãs da nossa congregação estão a ajudar 170 crianças. É uma longa jornada, mas se arregaçarmos as mãos e trabalharmos em conjunto, penso que podemos construir um futuro com esta geração.

Há muitos órfãos, também?

Muitos. Não sei o número total, mas muitas perderam os pais durante a guerra.

Esse é outro problema que o país terá de enfrentar no pós-guerra? 

Todas as casas na Síria têm uma experiência dolorosa para contar. Cada pessoa. Um dos membros do nosso grupo levou recentemente uma criança que perdeu os pais durante a guerra e vive agora com a avó. Só para tomar o pequeno almoço, conversar com ela, pô-la a falar. Como esta há muitas, muitas outras na Síria. 

Sendo engenheira de formação, parece-lhe que é possível reconstruir a Síria como era antes ou nunca mais será a mesma?

Poderá ser melhor do que antes. Chegou a altura de reconstruir a Síria e o que virá poderá ser melhor, mas será difícil. As famílias que perderam as suas casas, não perderam apenas as paredes, perderam o que estava dentro das paredes, perderam as memórias. Muita gente refere que gostava de guardar isto ou aquilo por causa da lembrança. Quando a minha família foi para França, o meu pai disse ‘levem apenas as coisas importantes’ e a minha sobrinha perguntou-se ‘quais são as coisas mais importantes para mim? Tudo tem uma história’. Por isso, sim, temos de reconstruir, mas reconstruir será mais fácil do que curar as almas e corações partidos dos sírios. Isto será muito mais doloroso.

Acredita que é possível viver em harmonia numa sociedade com tantas religiões como antes da guerra?

Temos essa esperança. É verdade que vivíamos em harmonia. Andávamos juntos nas escolas, na universidade, nunca pensámos nas diferenças, olhávamos para nós como irmãs e irmãos. A Síria é um pais que tem realmente uma história de muitas religiões a conviverem umas com as outras. Esperamos que os próximos anos sejam mais de juntar as mãos e os corações para proteger o nosso país.

Mas será muito difícil recuperar essa harmonia religiosa pelas marcas que a guerra deixou?

Sim, não é fácil, mas em algumas zonas do país já vemos as coisas a normalizar-se como antes. Noutras, é preciso um pouco mais de tempo para estas feridas serem recuperadas e para as pessoas se aceitarem umas às outras.

Quantos católicos deixaram a Síria por causa do conflito, faz ideia? 

Não tenho esse número, mas os cristãos são uma minoria no país. Em Alepo, entre católicos e ortodoxos há hoje 35 mil pessoas quando antes eram umas 250 mil.

Acha que as pessoas regressarão agora que a guerra está quase no fim?

Não será fácil. Algumas pessoas venderam as suas casas antes de partir para conseguirem dinheiro para a viagem. Outras, as suas casas foram destruídas. Para muitos sírios que deixaram o país, depois de quatro, cinco anos fora, têm a vida estabilizada e dificilmente regressarão. Temos a esperança de que um dia regressem. Alguns adorariam voltar, mas nem todos. 

Acha que o governo quer que as pessoas que deixaram o país voltem à Síria?

Claro que sim, a mãe necessita que os seus filhos regressem. Uso sempre a imagem de uma mãe porque houve um bispo que disse ‘a minha mãe não é uma mãe bonita, mas não deixa de ser a minha mãe’. A Síria poderá não ser um dos países mais bonitos do mundo, mas continua a ser o meu país.

Em algum momento pensou também em partir?

Nunca. No princípio da guerra, o nosso responsável provincial enviou-nos uma carta oficial a dar-nos a liberdade total para decidir, porque viver num estado de guerra é muito difícil e nem todos conseguem lidar com isso: ‘Qualquer irmã que deseje partir basta dizer qual o país para onde quer ir’, dizia a carta. Temos duas irmãs britânicas e a primeira reação delas foi ‘não, a Síria é o nosso país e daqui não saímos’. Todas dissemos que não. ‘Este é o tempo de ficarmos com o nosso povo.’ E foi uma experiência profunda para nós.

Acha que a sua formação religiosa a preparou para isto, para ser forte nestes tempos difíceis?

Lembro-me que quando disse sim nos meus votos finais e ofereci a minha vida ao Senhor, tal como no casamento, foi para os bons e os maus momentos. Se nós, como freiras, deixássemos o país e fôssemos para um sítio melhor, que sinal de cristinianismo estaríamos a dar? Seria uma vergonha para mim. Ok, percebo, há pessoas que não aguentam, mas esta foi uma decisão que tomei livremente: ‘quero ficar, quero ajudar o meu povo’. E acreditei que o Senhor nos daria a força e o poder para tentar ajudar os outros. Foi o momento em que me senti mais forte.

Quase oito anos de conflito, tanta destruição, tantas vidas perdidas, tantos que fugiram e tudo acabará por ficar na mesma. O que pensa disso? 

O que quer dizer com tudo ficou na mesma?

A guerra começou com a ideia de mudar o regime, de depor o presidente Bashar al-Assad e este vai continuar no poder, o governo mantém-se.

Normalmente não falo de política…

Não quero que me responda a uma questão política, mas…

Não continua igual, toda a gente sabe, toda a gente aprendeu uma lição por causa desta guerra. nada permanece como estava, nem mesmo nós. Crescemos com esta experiência. Agora não sou como era antes, olho para as coisas com outro ponto de vista. Ter esta experiência de partilhar mais, contactar com as pessoas, é tudo aprendizagem. E não sei qual o propósito, ninguém sabe, com a política ninguém sabe. Não gosto de discutir política, porque ninguém sabe a verdade, o que está por trás. Mas, para mim, é muito doloroso quando os jornais falam da Primavera Árabe. Ver todas as distorções. Isto é a verdadeira Primavera Árabe?

O que acha que vai acontecer agora com… 

Não sei, não discuto política. 

Mas já se perguntou a si própria…

Eu não pergunto nada a mim própria. 

Viveu em Alepo durante muito tempo, uma cidade que sofreu bastante com a guerra, o que permanece ainda da zona considerada como Património da Humanidade?

A cidadela ainda permanece. Partes à volta da cidadela foram destruídas, especialmente o velho souk que foi bombardeado. Acho que as únicas coisas que ficaram foi um museu dentro de Alepo e a cidadela. A maioria do que estava classificado como Património da Humanidade foi destruído. Há pessoas que estão a ir para Alepo para restaurar e recuperar a sua velha forma.

Acredita que é possível restaurá-lo em parte?

Porque não? No seu todo. A parte velha está a ser libertada para que se possa fazer isso. 

Está em Portugal para participar numa iniciativa para rezar pela paz no mundo e pelas crianças. Acha que rezar agora é importante para o futuro da Síria? Vai mudar alguma coisa? 

Sim, e não só agora, desde o princípio que valeu a pena. Lembro-me que, em setembro de 2014, quando o Papa pediu ao mundo inteiro para rezar pela Síria, numa altura em que havia fortes combates na Síria. Depois da oração, tudo mudou. A oração tem mais poder do que qualquer outra coisa. Para mim é o poder que temos enquanto cristãos e devemos ter orgulho nisso. Quando nos param nos checkpoints, perguntam-nos ‘têm armas?’, respondemos que sim, que temos a arma do amor. A oração consegue empurrar-nos para seguir em frente. Sem oração não conseguimos mover-nos para sermos mais fortes. E durante a guerra havia muitas atividades e encontros e orações nas igrejas a favor da paz na Síria. Nas mesquitas, em diferentes partes da síria. Em 2015, vim a Portugal e ofereceram-me uma escultura da Nossa Senhora que andou de casa em casa em Alepo, ficando três dias em cada casa, onde as pessoas se juntavam para rezar o terço. Este ano e no ano anterior, os nossos bispos consagraram Alepo e a Síria à Nossa Senhora. Acreditamos que o poder da oração não muda apenas o mundo, muda o coração e a mente das pessoas. Por isso, vou rezar pela paz, vou rezar para que Nossa Senhora seja capaz de mudar a mente e o coração de quem manda para que a guerra acabe, e não só na Síria, mas em todo o lado. 

Em algum momento da guerra deixou de rezar? 

Parei de rezar, não porque queria parar de rezar, mas às vezes não conseguíamos dormir, ficávamos toda a noite em vigília e no dia seguinte tinha de ir para a escola, nessa altura a tua cabeça e o teu corpo estão tão cansados que não consegues, mas dizemos ‘Deus, ofereço-te isto, o meu cansaço. Desculpa não passar tempo contigo, mas isto é o que sou’. Portanto, sim, às vezes, não rezávamos, ficávamos em silêncio, sem fazer nada, sem dizer nada, não conseguíamos dizer uma palavra. Lembro-me quando faltava a luz e íamos para capela, eu e as outras irmãs, com a vela numa mão e e o livro das orações nas outras e tentávamos rezar. Só que o coração estava tão cansado que só conseguimos dizer ‘estou aqui Senhor, não consigo dizer nada, a minha mente está tão cansada, mas dou-te tudo o que sou”. Acontecia muitas vezes.

Sentiu a escuridão no coração? 

Sim, sim, às vezes, quando as coisas te afetam e o que sentes é demasiado. Só mais tarde é que acabamos por dizer ‘ok, vamos ver isto pelo lado positivo’.

Há uma nova lei sobre a liberdade de religião na Síria, muito mais restritiva. Pensa que o governo vai passar a controlar mais o que as diferentes religiões estão a fazer? 

Esperemos que não. 

Mas a legislação é mais restrita. 

Todas as igrejas continuam a praticar a sua fé, as suas atividades com muita liberdade. Os cristãos continuam a praticar a sua fé. Eu, como cristã, pratico a minha fé, vou à igreja. Não temos essa pressão sobre nós. Esperamos que nos próximos anos continue a ser assim, ou com mais liberdade. Não tenho a certeza, mas é isto que faço. Até agora, na maior parte da Síria, os cristãos são livres para praticar a sua fé. 

Não acha que isso vá mudar? 

Esperemos que não. 

O que espera para o futuro da Síria? 

Espero que a guerra acabe em toda a Síria e que se comece a reconstruir o país. Gostava e espero voltar a ter a Síria como antes ou até melhor. E se o mundo é mesmo sério na sua palavra de que quer a paz na Síria, adorava que se conseguissem levantar as sanções internacionais à Síria. Adorava que isso acontecesse. E esta é a minha mensagem para o mundo. E ao mesmo tempo quero aproveitar esta oportunidade para agradecer aos que são realmente nossos irmãos e irmãs. Nesta altura temos de nos apoiar, há muitos irmãos no mundo que rezam por nós. Estive numa escola aqui em Portugal onde as crianças daqui puderam conhecer as nossas crianças de Alepo através do Skype. E o que elas disseram foi ‘estamos a rezar por vocês’. Para mim, é um presente ter irmãos e irmãs em todo o mundo a rezar por nós. Se uma parte do nosso corpo sofre, todo o corpo sofre, então conseguimos sentir que estão a partilhar a nossa e estão preocupados connosco.