Lokomotiv. Os ferroviários que se orgulham de não ter esqueletos nos armários

Lokomotiv. Os ferroviários que se orgulham de não ter esqueletos nos armários


O mais modesto dos cinco grandes clubes moscovitas recebe amanhã o FC Porto num estádio que foi pioneiro no futebol russo. Iuri Semin, o treinador histórico, sonha com uma proeza na Europa, coisa que tem ficado muito longe dos horizontes do antigo Kazanka, pouco querido do regime soviético


Em Moscovo, essa cidade extraordinária onde o FC Porto disputa, amanhã, o seu terceiro jogo nesta edição da Liga dos Campeões, a rivalidade entre os cinco grandes clubes não se explica sem regressarmos aos tempos da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Há quem lhes chame O Pentágono de Moscovo: Dínamo, Spartak, Torpedo, Lokomotiv e CSKA. É o Lokomotiv que nos traz a estas páginas, mas não deixemos o registo incompleto.

Durante a vigência do regime comunista, cada clube estava ligado a uma organização do Estado. O Dínamo, por exemplo, tendo raízes muito populares, acabou por suscitar ódios violentos pelo facto de ser dependente da Polícia Secreta, sob a designação dos seus vários acrónimos – OGPU, NKVD, KGB. O Spartak veio a ser o clube do contra, suportado pelos sindicatos, favorito da classe operária, achincalhado pelos rivais como Clube da Carne por ter tido um apoio das indústrias do setor. O CSKA era o clube do exército e chegou a ser propriedade privada do Ministro da Defesa. O Torpedo, hoje caído nas divisões secundárias, teve a sua história ligada às fábricas de automóveis, principalmente à ZIL, responsável pela construção da maior parte dos tratores, veículos militares e limusines da URSS.

O Lokomotiv não dá margem para engano. Estava na dependência do Ministro dos Transportes através das linhas ferroviárias russas. Muitas vezes considerado como o clube menos popular dos cinco, teve desde os anos 50 uma particularidade única: fomentou jogos particulares contra equipas estrangeiras, não apenas da Europa mas também de África e da Ásia. Sempre de países com relações de privilégio com os soviéticos, como está bem de ver, mas ganhando a aura de um verdadeiro embaixador. Nunca foi campeão da URSS – duas vitórias na taça, em 1936 e 1957 -, o que contribuiu para a sua menor dimensão em relação aos outros quatro pontos do pentágono. Mas sobreviveu à queda do regime com uma segurança e uma vivacidade notáveis, muito por obra de Iuri Semin, o atual treinador que teve quatro épocas distintas no comando técnico do clube da sua paixão: 1986-90, 1992-95, 2009-2010 e de 2016 até lá vá saber-se quando. Ah! E também foi presidente, um ano, entre 2005 e 2006, depois de ter falhado como selecionador nacional.

Fundado em 1922 como Kazanka, aglomerou a partir de 1924 os melhores jogadores russos que trabalhavam para os caminhos de ferro, e nem é preciso recordar que o futebol profissional era interdito na URSS, embora com as amplas liberdades que todos percebiam de olhos fechados. Nesse tempo era o Clube da Revolução de Outubro, designação algo poética que terminou em 1936 com o bem mais prosaico baptismo de Lokomotiv.

Vida difícil. Até ao final da década de 50, o Lokomotiv esteve na linha da frente do futebol do país. Foi o primeiro clube a conquistar a Taça da União Soviética, cuja edição de estreia marcou o ano de 1936, e um candidato potencial ao título de campeão, excetuando uma fase de quebra no final da II Grande Guerra.

Talvez o facto de nunca ter sido uma das organizações preferidas do regime bolchevique tenha permitido o crescimento notável dos ferroviários a partir dos anos-90. Afinal não traziam atrás de si nenhuns armários cheios de esqueletos escondidos, se é que me faço entender.

Valeri Nikolaievitch Filatov, antigo jogador do Torpedo e do Spartak, assumiu as rédeas da presidência e a entrada definitiva na idade moderna. Com ele chegou Iuri Semin. A construção da Lokomotiv Arena, terminada em 2002, deu ao jogadores um dos melhores palcos de Moscovo. Nesse mesmo ano, Spartak e Lokomotiv terminaram o campeonato com o mesmo número de pontos. A Federação Russa ordenou a disputa de um encontro para decidir o campeão. Decorreu no estádio do Dínamo, completamente lotado. Um golo madrugador de Dimitri Loskov deu aos ferroviários o primeiro título da sua história. Dois anos mais tarde repetiriam a proeza.

As últimas épocas foram, de alguma forma, difíceis para o Lokomotiv. Slaven Bilic, Leonid Kuchuk, Miodrag Bozovic e Igor Sherevchenko sucederam-se no cargo de treinador (pelo qual também passou José Couceiro) sem classificações notáveis. Pelo contrário. O salvador regressou para alívio dos adeptos: Iuri Semin aceitou a sua quarta tarefa no clube, tendo agora como adjunto o herói do primeiro título, Loskov. Foram eles os obreiros do terceiro campeonato ganho.

Com duas meias-finais da extinta Taça das Taças no currículo, consecutivas, em 1997-98 e 1998-99, o Lokomotiv não tem motivo para grandes elogios internacionais. A Liga dos Campeões tem-lhe ficado larga nas mangas: em 2002-03 ficou-se pela fase de grupos; em 2003-04 chegou aos oitavos-de-final para perder com o Mónaco, nessa época finalista com o FC Porto. O mesmo FC Porto que acabou de aterrar em Moscovo…