Visitei recentemente Edimburgo, onde fui confrontado com uma enorme manifestação a favor da independência da Escócia. Os manifestantes exibiam simultaneamente bandeiras escocesas e bandeiras da União Europeia, querendo consequentemente associar o seu desejo de separação do Reino Unido à permanência na Europa. A manifestação teoricamente faria pouco sentido, uma vez que o povo escocês em 2014 tinha votado esmagadoramente pela sua manutenção no Reino Unido. Mas estamos em 2018, e o Reino Unido decidiu em 2016 sair da União Europeia por decisão dos eleitores ingleses, em sentido contrário ao voto dos escoceses. Ora, é manifesto que essa nova realidade põe claramente em causa o significado do referendo escocês. Na verdade, os escoceses votaram em manter-se no Reino Unido enquanto Estado-membro da União Europeia, não enquanto Estado fora dessa União. Aliás, na campanha foi decisivo o argumento de que a independência da Escócia implicaria a saída da União Europeia. Por isso, a nova realidade institucional do Reino Unido justifica plenamente um novo referendo na Escócia, não sendo de estranhar que o governo escocês já o tenha proposto. Na verdade, se a Escócia pertence à União Europeia desde 1973, qual a razão pela qual há-de sair dela, contra a vontade da sua população, apenas porque os eleitores ingleses assim o decidiram?
Mas mesmo em Inglaterra o apoio ao Brexit está claramente a esmorecer, como o demonstrou a enorme manifestação em Londres do passado fim-de-semana, apelando a um segundo referendo. Na verdade, o que se tem vindo a assistir nas negociações entre o governo de Theresa May e a União Europeia é cada vez mais a um impasse negocial, com as consequências dramáticas de se chegar a Março de 2019 com uma saída sem qualquer acordo. Essa saída implicaria a reinstalação de fronteiras físicas entre a União Europeia e o Reino Unido, o que na Irlanda do Norte implicaria uma violação do acordo de Sexta-feira Santa de 1998, que devolveu a paz à região. Mas a proposta da União Europeia de que a Irlanda do Norte continue no mercado único equivaleria ao desmembramento do Reino Unido, o que é inaceitável para o governo de May, inclusivamente devido ao apoio que lhe dão os unionistas irlandeses. Por outro lado, qualquer cedência de May aos negociadores europeus, no sentido de um “soft Brexit” seria vista pelos eurocépticos do seu partido, liderados por Boris Johnson, como uma traição ao referendo de 2016.
O Reino Unido encontra-se assim claramente entre a espada e a parede, vinculado a executar um referendo, cujas consequências não foram adequadamente previstas, e que pode conduzir a uma crise económica colossal e em última instância ao desmembramento do próprio país. Por isso hoje, embora tenham passado apenas dois anos, deve-se efectuar num segundo referendo. Na altura o que foi prometido aos eleitores ingleses foi um acordo de saída que preservasse o essencial da sua relação com a Europa. Esse acordo manifestamente não vai existir, pelo que os eleitores devem decidir agora se querem ficar na União Europeia ou sair sem acordo algum.
Na verdade, o que caracteriza as democracias não é apenas o dever de respeitar a vontade do povo, é também aceitar que o povo tem o direito de mudar a sua opinião. Da mesma forma que os governantes eleitos pelo povo podem ser substituídos por decisão do próprio povo, não se vê razão para que em relação aos referendos não se aplique a mesma regra. O povo português, por exemplo, já se pronunciou contra a despenalização do aborto em 1998, tendo depois se pronunciado a favor em 2007. É verdade que entre esses dois referendos decorreu mais tempo, mas também é verdade que as circunstâncias políticas não se alteraram à velocidade com que tal está a ocorrer no Reino Unido. E especialmente ninguém colocou os eleitores ingleses perante a alternativa com que hoje estão confrontados.
Da mesma forma que o provérbio diz que a mordedura do cão se cura com pêlo do mesmo cão, parece neste momento que a saída para a crise causada pelo referendo ao Brexit é um novo referendo ao Brexit. Quem não o fizer pagará no futuro custos políticos enormes por essa recusa.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção
das regras do acordo ortográfico de 1990