O que faz um século por um artista? Apaga-o, mete-lhe gasolina no mito ou empurra-o para o mais empoeirado canto da prateleira do meio, aquela que só consultamos quando uma data redonda nos acende uma luz da memória? Quanto a Amadeo de Souza-Cardoso é (hoje), felizmente, fácil classificá-lo no seio dos não esquecidos – é, aliás, à sua memória que temos voltado num verdadeiro frenesim nos últimos tempos, e principalmente de há dois anos para cá.
Depois de demasiado tempo votado ao canto do pó, Amadeo está vivo e recomenda-se: nunca a sua obra foi tão estudada, destacada e visitada. Ora atentemos: em 2016 foi inaugurada no Grand Palais, em Paris, a exposição “Amadeo de Souza-Cardoso” (patente entre abril e julho, foi visitada por mais de 70 mil pessoas), alavancada pela Gulbenkian – e em cujo catálogo Sylvie Hubac, residente da Réunion des Musées Nationaux, escreveu que a história da arte se “tinha esquecido há muito do seu génio”. No mesmo ano, o Museu Nacional Soares dos Reis teve patente “Amadeo de Souza-Cardoso, Porto-Lisboa, 1916-2016”, exposição que seguiu depois para o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, onde ficou nos dois primeiros meses de 2017 e pela qual as pessoas chegaram a fazer filas de duas horas. Ainda em 2016 foi colocada uma placa comemorativa no número 20 da Rua Ernest Cresson, em Paris, a casa onde o artista habitou e trabalhou de 1912 até ao início de 1914, altura em que foi obrigado a regressar a Portugal. E em 2018 a conta continua a ser de somar – já lá iremos.
Mas o despertar para a obra do grande modernista em Portugal não se pode contar sem estes dois momentos, que talvez tenham marcado a viragem: a exposição “Amadeo de Souza-Cardoso – A Primeira Descoberta de Portugal na Europa do Século xx”, em 1983, a cargo de Paulo Ferreira, visitada por mais de 75 mil pessoas e que integrou a inauguração do CAM, e outra grande exposição de retrospetiva da sua obra, “Diálogo de Vanguardas” (Gulbenkian, 2006), comissariada por Helena de Freitas e Catarina Alfaro, em que além de obras inéditas do pintor, o seu trabalho foi exposto por contraponto a cerca de três dezenas de outros artistas seus contemporâneos, como Picasso, Brancusi, Modigliani – que foi um dos amigos mais próximos de Amadeo –, Malevitch, Sonia e Robert Delaunay, Kokoschka, Jawlensky, August Macke e Olga Rozanov. Finalmente, em 2007 iniciou-se a publicação pela Assírio & Alvim do catálogo raisonné da sua obra, um instrumento-chave para a divulgação e compreensão da importância do trabalho do artista.
Internacionalmente, há que destacar a exposição “At the Edge: A Portuguese Futurist, Amadeo de Souza-Cardoso”, na Corcoran Gallery of Art, em Washington, em 1999, que depois passou por Chicago e Nova Iorque.
De tudo um pouco
O outono foi uma estação que teve tanto de aziaga como de venturosa para Amadeo de Souza-Cardoso. Nasceu a 14 de novembro de 1887, em Manhufe, freguesia de Mancelos, Amarante. Foi a 1 de novembro (de 1916) que inaugurou a primeira exposição individual em Portugal, no Salão de Festas do Jardim Passos Manuel, no Porto; seguindo-se Lisboa, na Liga Naval, de 4 a 18 de dezembro do mesmo ano.
E foi também no outono de 1918 que partiu precocemente: completa-se na próxima quinta-feira, 25 de outubro, o centenário. Tinha 30 anos e, por menos de um mês, não ouviu calarem-se os canhões da i Guerra Mundial.
Filho de Emília Ferreira Cardoso e de José Emygdio de Souza-Cardoso, um grande proprietário rural, Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso cresceu na pacata localidade de Manhufe e demonstrou desde tenra idade vocação para as artes.
Ingressa em Arquitetura, na Academia de Belas-Artes, em Lisboa, em 1905, mas foi sol de pouca dura. Assim que fez 19 anos autopresenteou-se com uma viagem a Paris sem data de regresso. É na Cidade-Luz que desenha o seu caminho: desiste de arquitetura, muda-se para o número 33 da Rua Denfert-Rochereau e dedica-se exaustivamente à pintura. No ano seguinte arrenda o estúdio n.o 21, no 14 Cité Falguière, que passa a ser ponto de reunião dos artistas portugueses: “ […] o ateliê de Amadeo de Sousa Cardoso, no 14 Cité Falguière, que era de todos nós o que vivia com maior abastança, pois era filho de uma rica família de Amarante […] tornou-se um centro de reunião. Iam lá todas as noites o Manuel Bentes, o Ferraz, o arquiteto Collin, o Emmérico Nunes e eu”, contou Domingos Rebelo ao jornal “O Século”, a 20 de outubro de 1970. É também nesse ano que se apaixona por Lucie Pecetto, com quem se casa em 1914, já de volta a Portugal.
Voltando a Paris, foram anos apressados, aqueles, em que nadou nas vanguardas: em 1909 muda-se para um novo estúdio; passa a frequentar a Academia Viti (dirigida pelo pintor espanhol Anglada Camarasa) e conhece Amadeo Modigliani, com quem manterá sempre uma relação de amizade e com quem expõe em 1911. É também nesse ano que convive com os artistas Archipenko, Brancusi, Picabia, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Robert Delaunay, e começa a expor no Salon des Indépendants em Paris. Em 1913 participa no Armory Show, em Nova Iorque e, entre outros, no Salão de Outubro de Berlim. No ano seguinte priva com Gaudí e, devido à Grande Guerra, volta para Portugal, para onde retornam os amigos Robert e Sonia Delaunay.
Em 1916 aproxima-se do celebríssimo grupo da revista “Orpheu”, colaborando num terceiro número que nunca foi publicado, ao lado do amigo Almada Negreiros (com quem trabalhou em “Litoral” e “K4 quadrado azul”, de Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa – que o definiu como o “mais célebre pintor português de vanguarda” –, entre outros, abrindo o caminho do modernismo no país, percurso que o próprio sintetizou numa resposta que ficou para a História: “Eu não pertenço a nenhuma escola. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco.”
Foi o primeiro dos modernistas a morrer, prematuramente, na sua casa em Espinho, levado pela devastadora pneumónica.
Comemorações
Desde o início do ano que a Câmara de Amarante tem desenvolvido atividades para assinalar o centenário da sua morte. Até ao fim do mês, no museu que carrega o seu nome, está patente “Os Modernistas, Amigos e Contemporâneos de Amadeo de Souza-Cardoso”, que conta com a curadoria da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva. Recentemente foi ainda lançada a banda desenhada “Amadeo – A vida e obra entre Amarante e Paris” (ed. Saída de Emergência), de Jorge Pinto e Eduardo Viana. que querem assim puxar novos olhares para a vida e obra do pintor.