O fabrico de líderes políticos no Portugal contemporâneo foi delegado nos tornos televisivos, em residências permanentes nos estúdios, debaixo dos holofotes. Vale a pena recordar o inventor do processo de fabrico, Emídio Rangel, que, com excelentes resultados, mandou trabalhar ao torno José Sócrates e Paulo Portas. O método generalizou-se e passou dos canais televisivos generalistas para os de informação e do espaço de debate político para o “comentário futebolístico” (um misto de pseudociência, modalidade desportiva baseada na repetição do insulto e vitrina para quem precisa de ser visto). Mesmo que aplicado ao “comentário futebolístico”, o torno televisivo funciona e permite a transformação dos torneados em figuras públicas, num processo invertido em que opinar repetidamente na televisão confere autoridade e legitimidade para opinar. Assim se remodelam mas também se fabricam carreiras políticas, numa estranho mecanismo de representação política: quem aparece no “comentário futebolístico” ganha uma aura de falsa autoridade que acaba confundida com um poder de representação de uma qualquer maioria silenciosa.
Os tornos televisivos alimentam os partidos políticos com assento parlamentar. Mas também produzem “para fora”. Marinho e Pinto medrou à sombra dos programas “da manhã” e “da tarde” das televisões generalistas até chegar aos programas ditos sérios ou “da noite”. Santana Lopes teria uma Aliança sem dedo se as televisões o tivessem abandonado como abandonado deixou o PSD. André Ventura, catapultado para a existência política pelo “comentário futebolístico”, anunciou recentemente o abandono do PSD e a fundação de um novo partido político, construído a partir de um movimento pró-expurgo de Rui Rio.
A fundação em Portugal de um partido assumidamente de extrema-direita faz-nos recuar aos movimentos saudosistas do Estado Novo no pós-25 de Abril (Exército de Libertação Popular, Movimento Democrático de Libertação de Portugal) ou a uma esperança maior do que o Partido Nacional Renovador (que, no seu melhor resultado eleitoral de sempre, por sinal em 2015, nunca passou dos 27 mil votos). A aposta num novo partido que assume um programa populista procura surfar uma qualquer onda de extrema-direita que estaria a varrer a Europa (Hungria, Áustria, Itália, Suécia, Finlândia, França, Holanda, Rússia, mais recentemente o Vox, em Espanha…) e o mundo (os EUA de Trump, o Brasil de Bolsonaro). Há dois problemas com esta teoria “surfista”. A onda não existe na Europa e, onde há aumento da votação na extrema-direita, as razões não são nem uniformes nem repetíveis em Portugal numa escala que possa ter consequências eleitorais. Pelos EUA, o fenómeno Trump (eleito por muitos que tinham deixado de votar) está em queda, com uma reacção por parte dos que se abstiveram em Novembro de 2016 e do aumento do voto das novas maiorias étnicas. Pelo Brasil, não se deve confundir a rejeição do PT e da corrupção que democratizou com uma identificação com o primarismo do discurso de Bolsonaro. A rejeição de uma determinada opção pode conduzir à escolha de outra, mas não é garante da manutenção de tal escolha.
Um partido de extrema-direita em Portugal terá um efeito de vacina. A solidão da cabina de voto pesa mais na escolha do que o anonimato cobarde das caixas de comentários soezes. Acaba o tabu e constata-se o fracasso da proposta junto dos eleitores. Desse ponto de vista, o nome da coisa, o slogan, o programa eleitoral e o destino eleitoral coincidem: Chega!
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990