No regresso a Portugal, a sensação de “alerta permanente” continua

No regresso a Portugal, a sensação de “alerta permanente” continua


A intervenção psicológica nas Forças Armadas é uma realidade cada vez mais visível entre os combatentes. Atualmente, cerca de 1% dos militares sofrem de stresse pós-traumático. Os outros apenas têm a sensação de “alerta permanente” ou de “confusão”


Vasco Bastos esteve 27 meses em combate em Angola e assistiu à morte de um dos companheiros, que pisou uma mina a caminho de uma missão. Foi o militar, agora com 76 anos, quem teve de recolher “os pedaços” do corpo do camarada. Passaram cinco décadas, mas a imagem continua viva na cabeça de Vasco – que nunca recebeu apoio psicológico para ultrapassar as memórias da guerra. E não é caso único. Segundo o Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAE), quase 1% dos militares sofrem de stresse pós-traumático. São perto de duas centenas de homens, mas já foram muitos mais. Em comparação com o passado, os casos mais recente são “residuais”, afirma Garcia Lopes, chefe do Núcleo de Apoio e Intervenção Psicológica do CPAE.

Foi Vasco Bastos, agora na reserva, quem teve de gerir as próprias emoções. À época, “não havia acompanhamento” e regressar à vida civil nem sempre é uma tarefa fácil. Apesar de a realidade portuguesa espelhar uma situação diferente dos países que atravessam situações de conflito, o sentimento que muitos militares tentam deixar para trás pode, nalguns casos, acompanhá-los no regresso a Portugal, comprometendo assim o seu quotidiano.

Vasco Bastos confessa que voltou para terras portuguesas “um pouco transtornado”. Durante muito tempo, havia “uma série de coisas que não podia ver” porque associava automaticamente aos momentos difíceis que viveu no passado, tais como “pancadaria, armas e barulhos muitos intensos”. Diz também que, ainda hoje não consegue “ver filmes com cenas de violência” e principalmente “se envolverem armas” – nessas situações tem “logo de mudar de canal”. 

As emoções vividas em conflitos de guerra ficam de tal forma vincadas na memória dos militares que, em alguns casos, chegam a desaparecer só no “fim da vida”. Quem o diz é o ex-combatente Vasco Bastos, que afirma ter deixado de frequentar os convívios da companhia em que foi militar por sentir que recordar constantemente o passado é a pior forma de lidar com os traumas que ainda hoje estão presentes na sua vida

No entanto, nem todos os combatentes carregam o mesmo peso das intervenções militares. O tenente-coronel Vitorino Gonçalves, que esteve pela última vez em combate no ano de 2008, nos conflitos da independência do Kosovo, declara que “não [sentiu] o dito stresse pós-traumático”, mas reconhece que todos os momentos vão ficar guardados “para sempre”. Aliás, recorda que a situação com que teve mais dificuldade em lidar foi quando um camarada do seu primeiro contingente, em Angola, faleceu. 

Ambos reconhecem que os sentimentos individuais de cada elemento acabam por influenciar a ligação do grupo. Contudo, Vitorino Gonçalves afirma que é preciso conhecer “onde estamos” e, sobretudo, “com quem estamos a lidar” para existir uma cooperação de forma unânime. Até porque a ausência do apoio familiar acaba por abalar os sentimentos de todos e são os próprios camaradas que atuam nas situações de perigo emocional, revela o ex-militar que esteve no Kosovo. 

Vitorino Gonçalves chega mesmo a confessar que “de outra forma não teria conseguido ultrapassar a grande maioria das situações” e reconhece que a camaradagem foi um dos motivos pelos quais “nunca [precisou] de recorrer ao apoio psicológico”.

Tempos modernos O convívio com a falta de sorte e o facto de estarem confinados vários meses num espaço onde a desgraça é dominante são aspetos para os quais os militares de hoje em dia estão cada vez mais preparados, revela o tenente-coronel Bernardino, que comandou a 3.a Força Nacional Destacada na missão da Organização das Nações Unidas (ONU) na República Centro-Africana.

O comandante da força que regressou no dia 6 de setembro a Portugal admite que hoje em dia se registam menos casos de stresse pós-traumático devido à quantidade de informação que está disponível, mas também porque há um constante acompanhamento emocional e afetivo dos militares.

O tenente-coronel Bernardino recorda que, durante o período em que a força esteve na República Centro-Africana, os piores momentos foram quando estava em combate direto com as forças armadas. No entanto, “o calor do momento acaba por ser um elemento que ajuda a esquecer toda a pressão”. “A disciplina, o rigor, o treino e a concentração fazem com que [os militares estejam] focados [naquilo que estão] a fazer”, explica.

No entanto, há momentos mais marcantes a nível emocional como, por exemplo, a morte ou o ferimento de um camarada, mas lida-se com eles de uma forma mais “profissional”, para não abalar o resto das operações. Toda a preparação a que os militares são submetidos no início deixa-os de tal forma capazes de atuar em diferentes conflitos que é difícil registar casos de grande perturbação, conclui o comandante da 3.a Força Nacional Destacada.

O tenente-coronel Bernardino garante que, durante a missão da ONU, foram poucos os camaradas que recorreram ao serviço de psicologia. Ainda assim, reconhece que continua a ser um trabalho muito importante “porque também somos humanos e, apesar de toda a preparação, temos sentimentos”, remata.

Dessa forma, mesmo que, na atualidade, a intervenção dos profissionais na vida militar seja mais ativa, não é possível controlar todos os aspetos, diz o tenente-coronel Bernardino. Isto porque “todos temos sentimentos diferentes” e a maneira como cada militar vai reagir no regresso “difere de pessoa para pessoa”.

A título de exemplo, o comandante da 3.a Força Nacional Destacada explica que todos os militares que regressaram da missão na República Centro-Africana ainda estão no processo de recuperação. Este método conta com palestras sobre a pós-deslocação (ver texto da página seguinte) e chega a ser um momento “que não tem fim” porque as memórias “ficam para sempre na cabeça dos militares”.

O mais difícil para o tenente-coronel Bernardino foi voltar aos hábitos da vida civil. “Ir a um centro comercial e ver toda a confusão, sem estar em estado de alerta permanente”, “ir à caixa multibanco e não perceber se 100 euros é muito ou pouco dinheiro” são as principais dificuldades. Mas estas reações, garante o tenente, são normais porque os casos mais preocupantes acontecem com “cerca de 1% dos militares de todas as forças nacionais”.