Krupp GmbH – Caixas Registadoras National


O problema está na representação do vazio. Procuramos a arquitetura de uma consciência melhor, menos imperfeita, não criminosa, mas não sabemos atingi-la


Desaparece com regularidade da Sonnenallee o memorial às vítimas do Holocausto. Observo-o há semanas, atravesso-o como a um ritual moderno, transformo-o mesmo num, breve, pagão, diário, cumpri-lo é para mim, portanto, como lavar os dentes, e estou seguro de que em certos dias, tenho a impressão que segundas-feiras e domingos, o monumento, o antimonumento, aliás, desaparece, sai de vista, é como se alguém o roubasse – não é invulgar –, até que, digamos, numa quarta-feira, lá está, no passeio, o texto que já conheço bem e me parece imperfeito, um nada redundante, os parágrafos mal costurados, irregulares, alguém pensou demasiado ou muito pouco, e saiu assim, está visto, é como muito em Berlim, deixou-se ficar, e no chão, ia a dizer, lê-se, projetado de uma caixa branca no alto:

“Neste local, a empresa Krupp GmbH – Caixas Registadoras National ergueu um campo de trabalho forçado com vista ao armamento do Nacional Socialismo.

Várias centenas de mulheres viveram aqui em clausura.

De 1944 a 1945 passaram por este local mais de 500 mulheres judias oriundas da Polónia. Nesse período existiu aqui uma delegação do campo de concentração Sachsenhausen.”

Não me ocorreu no primeiro desaparecimento que é da natureza do texto da Sonnenallee ser intermitente. Nessa primeira ocasião, segunda-feira ou domingo, não sei, parece-me que é nestes dias, vi aterrado o passeio escuro, sem pensar que de dia tão-pouco há texto, suspende-se o colosso – imagino-o assim – das caixas registadoras National, libertam-se as 500 mulheres, e, se no primeiro desaparecimento me pareceu impensável que se fundisse a lâmpada dos crimes da Sonnenallee, que, é verdade, há não muito desconhecia, hoje parece-me bem que o texto seja em simultâneo estacionário e intermitente, afinal a memória também é assim, está lá e às vezes não está, e um dia não estará de todo, até de Cervantes nos esqueceremos, escreve Enrique Vila-Matas, e nem precisava de o fazer.

Penso nestes assuntos, na fuga da memória, no delito que há numa lâmpada fundida, nos antimonumentos de Berlim, às vezes ocorre-me que os melhores são os mais pequenos e que gostaria, por exemplo, que inscrevessem nos horários de admissão das bibliotecas que a sala de leitura da Zimmermannstraße encerrava mais cedo na guerra, às quatro, não às seis, e que dos bombardeamentos incendiários sobreviveu pouco, a coleção de botânica, curiosamente, não ardeu, e isto parece-me mais terrível que as cavernas de Daniel Libeskind sobre o Holocausto, em muito semelhantes ao fosso cavado no lugar de uma das Torres, em Nova Iorque, ou à faixa de ilha que Jonas Dahlberg quis recortar em Utoya, na Noruega, e não deixaram.

O problema está na representação do vazio. Procuramos a arquitetura de uma consciência melhor, menos imperfeita, não criminosa, mas não sabemos atingi-la, não podemos, a verdade é essa, atingi-la, e por isso construímos memórias públicas da ausência, com as quais gesticulamos a única postura moral credível, a de dizer que não temos linguagem para o que aqui se passou, não há figuras que descrevam o Holocausto, e, porque não as temos, roubamos à terra, escavamos o solo, erguemos grutas modernas, cravamos naquilo que sobreviverá – na terra, digo – as feridas que nos infligimos. Tudo isto me parece um equívoco pouco secreto, uma forma de cortar a direito pelo insolucionável porque, afinal, não podemos deixar a página em branco para descrever o vazio, como escrevia recentemente Ben Marcus, tendemos a erguer o comum calvário reversível, o plano de contacto entre mortos e vivos que ao fim do dia abandonamos, temos, não há volta a dar, de construir alguma coisa para representar nada.

E nisto regresso à Sonnenallee, ao meu antimonumento fugidio, penso que ninguém procurou lá construir um edifício, pergunto-me se foi humildade ou improviso, e regresso de novo à memória do primeiro desaparecimento. Nessa noite não pisei onde habitualmente se projeta o texto, caminhei como desde o começo decidi que as pessoas a par dos crimes da Caixas Registadoras National devem caminhar, cumpri a cerimónia e logo a manchei ao lembrar-me do que Umberto Eco escrevia sobre os jeans apertados, que usá-los é o mesmo que a todo o momento saber que vestimos jeans apertados, a consciência altera-se, o rumo das coisas modifica-se e, portanto, dizia Eco, também Hegel, a experiência humana seria diferente se não tivéssemos inventado sapatos.

 

Jornalista

Escreve à quinta-feira