Feytor Pinto. “Alguns padres ainda têm medo  de falar de sexo”

Feytor Pinto. “Alguns padres ainda têm medo de falar de sexo”


Durante muitos anos, a Igreja fez da sexualidade um tabu. Uma realidade que o padre do Campo Grande defende que é preciso mudar 


Foi operado ao coração no final de 2017, mas está praticamente recuperado. E, aos 86 anos, o padre Vitor Feytor Pinto não pára, apesar das recomendações médicas para que desacelere. Vai-se desdobrando entre o trabalho na paróquia do Campo Grande, em Lisboa, e a atenção às pessoas que o procuram. Umas porque têm problemas, outras porque precisam simplesmente de conversar. E ninguém fica à porta. Nem os casais que vivem em situação irregular e decidem comungar nas suas missas. “Enquanto sacerdote, tenho de respeitar, não tenho que proibir”, garante. Numa longa conversa com o i – na biblioteca da Igreja do Campo Grande, porque tem o gabinete em obras –, Feytor Pinto fala da infância, da saúde, da educação, das famílias, da sexualidade, do amor e da morte. Sem fugir a nenhuma pergunta.

As suas homilias são conhecidas por terem só três pontos. Continua a fazê-las assim?

Sempre. Costuma dizer-se que esse é o modelo jesuítico, mas quando comecei a fazer assim não sabia que era. A melhor maneira de deixarmos às pessoas ideias claras é reduzir tudo o que queremos dizer a pontos concretos – e nunca mais do que três, porque depois o auditório dispersa-se.

Foi bom aluno a homilética?

Bastante bom. Devo confessar que fui mau aluno até ao terceiro ano do liceu. Era um aluno medíocre porque só queria brincar. O meu pai tinha um colégio em Castelo Branco, mas eu impus ir para o seminário do Fundão e entrei com dez anos. Não foi porque não podia estudar de outra maneira, mas porque quis sempre ser padre e queria fazer o caminho completo. E então entrei, mas era um cábula de primeira, não estudava nada. No terceiro ano chumbei a latim. Tinha 12 anos e, na altura, quando perdíamos uma cadeira, perdíamos o ano todo. A partir daí, pensei que tinha de começar a estudar e passei a ser o melhor aluno. 

Era indisciplinado?

Não estudava, divertia-me a fazer bonecos quando estava nas horas de estudo, gostava imenso de futebol (risos). Era um miúdo terrível. Já em casa tinha sido terrível. A minha mãe e o meu pai tiveram uma paciência que não imagina.

Por que razão era assim?

Porque tinha muita curiosidade. Queria descobrir tudo. Nunca estava satisfeito com o que sabia e fazia traquinices até descobrir o problema que poderia estar em questão. Entre os quatro e os sete, oito anos não havia semana em que não partisse a cabeça. Era muito intranquilo, metia-me com toda a gente – com os meus irmãos, os meus colegas da escola – e enquanto não estivesse tudo à bulha não estava feliz. 

Mas sempre querendo ser padre. De onde lhe veio essa ideia?

Havia vários padres na minha família. Quando entrei no seminário, havia seis já ordenados, eu fui o sétimo. Mas foi da minha relação com os meus dois tios que recebi maior influência. Nessa altura vivíamos em Castelo Branco e o meu tio Zé, que era padre, ia lá passar férias e celebrava missa às seis da manhã na Sé. Eu acordava às cinco, obrigava os meus pais a levantarem-se, e ia com ele. 

Ajudava na missa?

Gostava muito de ajudar na missa do meu tio! Adorava o ritual, era tudo de uma beleza extraordinária, mesmo sendo uma missa simples, celebrada só com o meu tio e eu. E eu queria poder fazer aquilo um dia. O meu momento favorito era a elevação. Pelo significado e também porque era eu que tocava a campainha e isso era uma coisa muito importante aos meus olhos (risos). 

O seu pai, sendo professor, não deve ter gostado de ver o filho chumbar. 

Avisou-me que tinha de começar a estudar. Na altura foi complicado, porque eu quis ir-me embora do seminário. Perder um ano era uma coisa terrível. Quem me valeu foi o vice-reitor, o cónego Lourenço Pires, que mais tarde se tornou num dos meus maiores amigos. Foi meu professor de matemática e, até ao fim da vida, disse sempre que eu tinha sido o melhor aluno que ele tinha tido. Eu adorava a matemática! Depois de me converter ao trabalho, e quando estava cansado de estudar e queria distrair-me um bocadinho, resolvia compêndios de problemas. Quando acabei o quinto ano do seminário, o meu pai, que também era professor de matemática, convidou-me a fazer o exame dos alunos do sétimo. Num quarto de hora respondi ao exame todo, que demorava hora e meia, e sem um único erro. Eu adorava. Há duas formas de uma pessoa ter a cabeça organizada: pela matemática e pelo latim. Mas do latim continuo a não gostar.

Chegou a ter namoradas?

Namoradas propriamente ditas, não. Simpatizei com algumas raparigas e conversávamos muito, mas terminava sempre da mesma maneira: “Sabes… eu quero ser padre…” 

E elas apaixonavam-se por si?

Não sei se chegaram a isso. Hoje são muito minhas amigas e presidi ao casamento de todas.

Voltando às homilias… ultimamente tem-nas feito sentado. Porquê?

Agora já as estou a fazer em pé novamente! Fui operado ao coração a 13 de dezembro, à válvula aórtica. A operação correu otimamente, mas depois surgiu-me uma ferida numa perna a que não dei atenção. Era uma ferida vascular, rasgou, chegou a ter um palmo de tamanho, foi uma coisa horrível. Estive internado mais de um mês e não era capaz de andar. Agora já estou melhor, a ferida já só é de um centímetro e já posso estar apoiado sobre essa perna.

Como ocupou o tempo no hospital?

Li muito, pude conversar com os amigos que me visitavam e pedi autorização ao senhor cardeal-patriarca para celebrar lá missa [no Hospital da Luz]. Primeiro estive na área das emergências e depois passei para os cuidados continuados e paliativos, porque a dada altura não suportava a dor. 

Como é que um padre, que tem uma dimensão mais espiritual da vida, encara a dor?

Não é mais fácil do que para as restantes pessoas. Trabalho na pastoral da Saúde e tenho falado muito sobre o problema do sofrimento, da dor e da paliação. Oito dias antes de ser internado estive uma hora e meia a falar numa pós-graduação sobre a dor na Universidade Católica, perante 50 médicos. E eu próprio estava com uma dor brutal e falei como se não tivesse dor nenhuma. Porque… a dor tem duas maneiras de ser travada. A primeira é através dos químicos – as pastilhas, a morfina, etc. A outra é através do controlo da mente e eu tenho esse controlo. O meu cérebro domina a dor e não me deixo apanhar pela sua violência. Domino-a. A parte espiritual é muito importante no controlo da dor e isto é uma matéria que hoje é estudada nas maiores universidades do mundo, sendo que em Portugal também já há vários doutoramentos sobre a dimensão terapêutica da espiritualidade. E a dimensão terapêutica da paliação. Dor e sofrimento são duas coisas diferentes. O sofrimento é espiritual, é psicológico, e a dor é física. A dor pode ser paliada com remédios, pastilhas, injeções, transfusões de medicamentos, analgésicos. O sofrimento não. Só pode ser controlado através da dimensão afetiva. Por isso é que se eu estiver com um doente e lhe der a mão, ele sente-se melhor. O que não quer dizer que não continue doente nem continue a sentir dor. 

Pode sentir-se dor e experimentar alegria, da mesma maneira que é possível sentir sofrimento e não ter dor. 

Sem dúvida. E agora entra a parte espiritual e religiosa: eu posso pegar no sofrimento e oferecê-lo por uma grande intenção. O sofrimento e a dor nem sempre são negativos. Podem ser necessários para alcançar uma alegria maior, como no nascimento de um filho, ou para chegar a uma grande vitória, como no caso de um atleta. 

E a dor de uma tragédia inesperada, injusta, irreparável… que propósito terá? 

Às vezes, dar origem a uma luta que é positiva e até necessária para se fazer coisas maiores. A dor pode sempre ter um lado positivo, se soubermos lidar com ela e introduzi-la no nosso projeto de vida. A dor faz parte da vida porque não há ninguém que não sofra. O amor implica dor. Da mesma maneira que a morte e o amor estão ligados. O que é o amor verdadeiro? É a capacidade de eu sair de mim, de eu morrer para mim, para o meu egoísmo, para fazer feliz o outro. 

É legítimo que um católico tenha medo da morte?

É normalíssimo ter medo da morte e o bom cristão também tem medo. Tem a ver com o desconhecido, o não se saber como se vai percorrer o caminho e chegar ao último momento. Mas, no aspeto espiritual, encara-se a morte não apenas como uma naturalidade humana, mas também como a identificação com o projeto redentor. E então o cristão vai-se preparando porque sabe que, apesar do medo, vida, como diz São Paulo, não acaba, apenas se transforma no eterno. Deixamos de ter medo no momento em que começamos a descobrir que a vida não desaparece. 

E os padres? Também podem ter medo de morrer?

Numa etapa, certamente que sim, mas depois sentimos que temos de nos preparar. Quando fui operado ao coração há 25 anos, às coronárias, senti mesmo que ia morrer. Quando me apercebi de que o problema era grave, senti necessidade de fazer três contactos: o primeiro para o meu cardeal, para lhe dizer que poderia acontecer e que tinha de estar preparado para isso. Depois, chamei o padre, confessei-me, uma confissão larga, e recebi a santa unção. A seguir, chamei o meu cunhado e disse-lhe que administrasse os meus bens. Pelo meio, ainda telefonei a dois amigos mais íntimos para lhes dizer que estaria sempre com eles. Mas correu tudo bem e as minhas coronárias ainda hoje estão ótimas. 

Na última operação não pensou nisso?

Não senti tanto, porque não fui aberto, foi por cateterismo, praticamente assiste-se à operação toda. Não há o corte nem o estar a dormir profundamente durante horas e isso dá muito mais confiança. Além disso, os meus médicos foram excelentes e tranquilizaram-me muito. É uma operação que dura cerca de hora e meia. 

O papel dos profissionais de saúde passa por aí, por esse estímulo de confiança? Sente que tem faltado esse lado mais humanizador da Saúde?

Introduzi o tema da humanização na Saúde em Portugal em 1982, 1983, quando ainda não se falava nisso. Tinha começado a trabalhar como capelão nos hospitais e visitei unidades na Bélgica, em Itália, no Canadá. Encontrei hospitais onde já havia voluntariado organizado. Quando voltei a Portugal, fizemos imensas conferências e congressos, tivemos uma equipa a percorrer vários hospitais e a contactar com os responsáveis de cada um para discutir como se poderia humanizar os tratamentos. 

Com os cortes na Saúde, essa vertente tem sido posta em causa? 

Por vezes esquecemo-nos de que a Saúde se trata de tratar seres humanos, principalmente aqueles que se encontrem numa situação de refugiados, de imigrantes, de pobreza. E há pessoas que não são tratadas humanamente. Não se pode deixar ninguém de fora dos cuidados de Saúde. A inclusão também é humanização e é tão importante. 

Fez parte da primeira equipa que constituiu uma unidade de cuidados paliativos em Portugal, no Fundão. Qual é o papel de um padre nesses lugares? 

É uma missão belíssima acompanhar o doente na sua fase terminal, aliviá-lo para que possa estar em paz. Mas um alívio que não lhe retire a consciência. Antigamente aliviava-se o sofrimento com doses de morfina e a pessoa ficava ali caída. Mas a paliação não é isso: é fazer de um lado a paliação química e, do outro, a afetiva. E as duas mantendo o doente com consciência e consciente da sua própria dignidade. 

A paliação afetiva é conversar?

É conversar. Muitos doentes têm essa possibilidade e não podem estar abandonados. E os médicos têm de ter esse carinho pelos seus doentes, conversando com eles. O toca e foge é proibido para os médicos, o receitar e ir embora. E é também exigência para os enfermeiros, os padres e os voluntários. É preciso fazer companhia, conversar, ajudar. Às vezes, saber fazer silêncio, porque o doente pode não querer ouvir ninguém. O silêncio também é importante. E, no caso dos padres… eu nunca começo por falar de Deus aos doentes. Nunca! Começo por lhes falar da vida, da beleza da vida e na necessidade de acreditar na vida. A conversa deve-se fazer na medida em que o doente a conduzir. 

Um doente terminal está mais aberto à espiritualidade?

Isso é uma tese que se chama geronto-transcendência: consoante vai avançando na idade, a pessoa vai-se aproximando mais de Deus. Do Deus em que acredita… pode ser no dos cristãos, em Alá, na divindade que é contemplada pelos budistas… 

Isso acontece pela consciência da finitude da vida e o medo da morte?

Não. Julgo que acontece porque todos aspiramos, sempre, a uma vida melhor. Querer mais e ir mais além faz parte da vida humana e também é ‘arranhar o céu’.

Nos paliativos, algum dia lhe pediram para morrer? 

Pedir, pedir não. Mas vários doentes disseram-me que desejavam morrer. Aconteceu até com uma tia minha, que tinha uma vida cristã fantástica, mas depois passou a ser acompanhada por uma equipa especializada em cuidados paliativos e, durante quatro meses e meio, não sofreu senão o normal e morreu muito em paz. O trabalho de paliação ajudou-a não querer precipitar a morte. 

A eutanásia é uma precipitação?

Desde logo, a eutanásia nunca é permitida do ponto de vista ético. Não gosto de falar do ponto de vista religioso, porque há uma coisa muito mais importante que é a ética, o respeito pela dignidade da pessoa. Ora, provocar a morte de alguém nunca é respeito pela pessoa.

Mesmo que a pessoa assim queira?

Provocar a própria morte não é respeitar a sua própria dignidade. O que querem as pessoas quando dizem que querem morrer? Querem outra qualidade de vida. E por vezes há outra tentação por parte das equipas médicas: a obstinação terapêutica. Prolongar a vida de um doente de maneira inútil, fútil, desnecessária, extraordinária. A equipa médica – enfermeiros, médicos, psicólogos, o sacerdote – têm que medir muito bem qual é o momento da morte normal e respeitá-lo. Porque administrar tratamentos inúteis e desproporcionados, às vezes para ainda ver um filho que vem não sei de donde, ou então por que é um grande político e ainda não se resolveu o problema da sucessão, ou ainda porque não fizemos os testamentos suficientes… isso também é contrariar a dignidade da pessoa. A equipa médica tem que ter a grande beleza e o equilíbrio científico de perceber o que é precipitar a morte e o que é prolongar exageradamente a vida. E ficar no meio. Na morte natural. O momento certo permite à pessoa entrar num estado de paz. 

A eutanásia foi recentemente chumbada no parlamento, mas os partidos de esquerda mostraram o desejo de voltar ao tema já na próxima legislatura. Há o risco de ser aprovada?

Tenho muita pena que quando, se fala de problemas fraturantes, em vez de aceitar normalmente as decisões da comunidade, se diga que se vai reabrir de novo o assunto. Penso que deveria haver um tempo, cinco ou dez anos, sem reabrir questões deste género. O respeito pela consciência de cada deputado é muito importante, mas cada deputado também tem de ter em atenção a vontade da comunidade. Nunca se fizeram tantos debates, conferências, programas de televisão sobre o tema. E foi votado. 

Se um católico deve ser católico em todas as vertentes da sua vida e se a geringonça é pela eutanásia e a Igreja não, é legítimo que um católico vote neste governo?

Do ponto de vista da Igreja, a Igreja limita-se a ser fiel à ética. A vida não pode ser, entre a conceção e a morte natural, ceifada. E defender isto não é religião. É a ética e a ética é uma ciência. O drama é que, muitas vezes, as chamadas filosofias da modernidade pretendem desafiar questões fraturantes e considerar que a liberdade vale para tudo. E não vale. A liberdade é um direito fundamental, mas esbarra na condição do outro e nos grandes valores da comunidade humana. E os grandes valores estão inscritos nos direitos humanos, que é a nossa carta. Aliás, nesse aspeto a Constituição Portuguesa, no artigo 24, é muito clara: a vida humana é inviolável. 

Mas deve, ou não, um católico votar num governo de esquerda?

Não ponho assim o problema. Há várias razões pelas quais se vota. E, às vezes, tem de se optar por aquilo que se considera positivo. É por isso que no PS, quando foi a votação da eutanásia, houve vários deputados que votaram contra a eutanásia. Não quer dizer que se tenham convertido à Igreja ou que se tenham voltado para a direita. É a consciência de cada um e a consciência tem de ser formada. E digo-lhe já que a consciência, atualmente, não está a ser bem formada. 

Como assim?

Não estamos a educar os jovens, os adolescentes e os cidadãos para os valores. Estamos a educar para as conveniências. E isto, para mim, é o grande desafio no campo da educação. A fidelidade incondicional à verdade foi substituída pela diplomacia do “eu não posso dizer isto porque não é diplomático”. Na Justiça, tenta-se justificar tudo para nos safarmos daquilo que é o direito do outro e por isso é que cada caso é tão complicado. Nós, neste momento, temos um país de casos que demoram anos a julgar porque não há uma fidelidade à justiça, há sim uma fidelidade ao que pode justificar o que se fez de errado. E depois temos a liberdade, que é trocada pela conveniência. Eu sou livre e, por isso, considero que posso manobrar toda a gente e fazer tudo o que eu quiser. E não posso. Depois, finalmente, há o problema do amor. O amor, hoje, não é verdadeiro. Está reduzido ao desejo, que se esgota, à paixão, que arrefece, e ao sentimento, que dura pouco tempo. O amor que por aí se encontra é do género “eu fico feliz porque tu me amas”. E isto é egoísmo, porque o amor é dizer: eu saio de mim para fazer o outro feliz no casamento, na amizade, no trato social. É eu ser capaz de me pôr em último lugar para fazer o outro feliz. Sem todos estes valores, é muito difícil nós não cairmos nas situações fraturantes. 

Portugal é o país da Europa com mais divórcios, apesar de continuar a ser maioritariamente católico. Sete em cada dez casamentos acabam em separação. O amor e a família estão em crise?

Isso acontece precisamente devido à falta dos valores-chave que referi. Quando eles não existem, acabo por desenvolver um processo que é da minha conveniência pontual e não sou capaz de compromissos definitivos. 

Mas porquê em Portugal? 

Portugal tem uma falta de formação em termos de valores muito grande. 

Como é que isso nos aconteceu?

Os educadores não tiveram essa preocupação. Há uma diferença muito grande entre educação e instrução. Nós temos, como se diz, os melhores professores na instrução. Mas na edução não. Não sentem que isso seja da sua competência. Não é por maldade que acontece, mas o professor, que devia ser educador, é um mero instrutor. Dá as cadeiras muito bem e com muita qualidade, mas os valores de fundo não os comunica. E às vezes até os ridiculariza. Isto é um drama enorme. 

É uma questão de ideologia?

O mais dramático é que não chega a ser ideologia. Podia ser, mas é só negligência. Foi uma falha muito grande no processo educativo. As avós da sua geração transmitiam valores aos netos, mas depois foi-se esbatendo isso. A pouco e pouco, o pai e a mãe começaram a ficar muito envolvidos no progresso, no desenvolvimento, no fazer carreira, no chegar mais longe e deixaram de dar tanta atenção ao processo educativo dos filhos, preocupando-se mais com o processo de instrução. Os interesses sobrepuseram-se aos valores. 

A culpa é das mulheres estarem menos em casa?

Não, de todo! Conheço mães que são profissionais extraordinárias e mães extraordinárias. 

Como se pode recuperar os valores?

Reformulando o processo educativo. E, aí, a Igreja e todas as confissões religiosas têm muita responsabilidade. 
Mas essa transmissão de valores de que fala não continua a ser feita nos muitos colégios católicos que existem?
Mais ou menos. Também nos colégios católicos há muito a tentação de se parar só na instrução. 

Para não perder alunos e captar filhos de pais que não são crentes?

Para não perder alunos, para lhes dar condições para entrarem rapidamente na universidade… toda essa dinâmica em que se está hoje entalado leva a esquecer o essencial do que é o processo educativo: educar para valores. 

Que lugar deve ocupar a educação para a sexualidade?

O problema da sexualidade é o mais importante da vida humana. É através dela, com que Deus nos marcou, que nos tornamos colaboradores do seu poder criador. Só que confunde-se sexualidade com atividade sexual. A atividade sexual é genital, a sexualidade é envolvente, englobante. Como disse João Paulo II, que foi um grande antropólogo e trabalhou este tema muito bem, a sexualidade é um dinamismo que atinge a vida toda do ser humano, desde o nascer até à morte. Engloba o corpo, a alma e o sentimento, até à dedicação de si próprio num grande projeto de vida. Eu, enquanto ser humano, tenho a minha sexualidade com genitalidade e afetividade. Não é só o meu corpo. A minha capacidade de amar é sexuada, a minha espiritualidade é sexuada. Tudo na minha vida tem esta marca de relação. Isto é tão importante que é preciso que se faça uma educação para a sexualidade que privilegie a afetividade, de tal maneira que o gesto físico de comunhão seja a expressão do amor comprometido que se está a viver. O drama de muitos é que fizeram da atividade sexual uma diversão. 

Não o choca, então, que um casal de jovens namorados não chegue ao casamento casto e tenha contacto sexual?

Se eles estiverem altamente comprometidos para realizarem uma comunhão de estabilidade, poderão ter expressões muito concretas e que podem, até, ajudá-los a descobrir a riqueza que têm em si. 

O mesmo se aplica a um divorciado recasado?

Há uns dias, o Papa divulgou um texto em que diz que temos de ter muita misericórdia e muito sentido novo de vida para com os casais que não são casados catolicamente. Temos que dar atenção aos casais de casamento civil, de segunda união, aos recasados, aos que estão em união de facto e aos que estão a preparar o casamento. Dar atenção, ternura, acompanhamento, porque têm estado sempre abandonados e entregues à sua natureza. A natureza humana é uma explosão maravilhosa, mas se não formos educados na nossa vida afetivo-sexual, estamos em risco de comprometer muitos valores.

E, havendo esses contactos sexuais, pode-se comungar? 

A história da comunhão é muito bonita. Quer o Papa Francisco, no artigo oitavo da encíclica Amoris Laeticia, quer o senhor Patriarca de Lisboa na carta que escreveu ao clero, dizem uma coisa muito bonita e que não tem sido referida: dizem que cada caso é um caso. Cada caso tem de ser estudado. Não podemos uniformizar e dizer a todos “não” ou a todos “sim”. Na minha paróquia há casais em situação irregular e nuns casos não comungam os dois, noutros comunga só um elemento e, noutros ainda, comungam os dois. É fruto da realidade concreta que estão a viver, depois de refletirem e porque são um caso único. Tomaram uma decisão segundo a sua consciência e eu, enquanto sacerdote, tenho que respeitar. Não tenho que proibir. 

Mas o catecismo é muito taxativo. 

O catecismo é um bocadinho como o código da estrada… 

… que é preciso cumprir, se queremos andar na estrada.

Certo. Mas, de vez em quando, há circunstâncias em que se tem de se pisar o traço contínuo para ultrapassar um carro avariado no meio da estrada. 

A partir do momento em que o catecismo diz, no que se refere à sexualidade, que esta deve ser vivida dentro de uma lógica reprodutiva no casal casado regularmente, é correto pregar outra coisa que não essa? 

A Igreja trabalhou a sexualidade muito mal durante muito tempo. Pelo silêncio, pelo tabu. E, neste momento, está a desenvolver um processo que se iniciou com o Papa João Paulo II, que fez 83 discursos de catequese à quarta-feira sobre a teologia do corpo, e que continuou com Bento XVI. Penso que este itinerário deve ser feito, mas para ser feito é preciso haver uma educação da sexualidade humana. Não da atividade sexual, mas da sexualidade. Porque se não houver este caminho percorrido, as pessoas vivem apenas pela explosão da natureza. Respondendo à sua pergunta, eu não sou capaz de indicar uma regra. O modelo, o ideal, sabemos qual é. Mas todos nós caminhamos para ideais. Todos nós queremos o ideal, mas nem todos chegamos lá. E é por isso que vamos abandonar as pessoas? Não é. 
Admite então que marido e mulher possam viver a sua sexualidade numa lógica fruitiva do prazer? 
Tem que ser. Isso é o elemento unitivo. A sexualidade no casal tem duas dimensões: unitiva e procriativa. Um casal que já nem sequer pode ter filhos renuncia à comunhão um com o outro? Não! Nós temos que ultrapassar os critérios de tabu do século passado e de há três séculos, dizendo que a sexualidade é um pecado. Não é nada um pecado, é um dom de Deus. Um maravilhoso dom. Temos que mudar a nossa mentalidade.

Porque é que a Igreja fez esse discurso durante tantos anos? 

Creio que era um problema de ignorância. A Igreja tinha medo de falar deste problema. Hoje, oficialmente, não tem. Os Papas falam de sexualidade. Alguns padres ainda têm medo e ainda não sabem tratar este problema bem, mas temos de ultrapassar isto, sempre na perspetiva de que a sexualidade é um valor, um dom de Deus, uma riqueza extraordinária que permite colaborar com o poder criador. 

Há muita gente a confessar pecados relacionados com a sexualidade?

Não falo sobre as minhas confissões! 

A confissão pode ser uma bitola para medir o sofrimento e as angústias humanas, ou isto é uma ideia romântica do sacramento? 

Vou citar o Papa Francisco: a confissão não é uma câmara de tortura, é um lugar privilegiado da misericórdia, ternura e da bondade de Deus. Ainda sobre a sua pergunta anterior: imagine que agora o padre começa a perguntar coisas sobre a vida sexual de cada um? Não pode! É da intimidade de cada um, tem de se respeitar.

A paróquia do Campo Grande, onde trabalha, é muitas vezes referida como uma paróquia de ricos. E o evangelho diz que é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. A responsabilidade de um padre nestas paróquias é maior?  Tem de pôr os ricos na linha?

Não tenho a sensação que lide com ricos ou que esta seja uma paróquia de ricos. É, sim, uma paróquia de grande generosidade.

Basta vir aqui à missa. Ainda não foi há muito tempo cruzei-me aqui, por exemplo, com a Assunção Cristas. 

Pode haver pessoas que têm algum poder e que vêm cá, mas eu aí também lhes dou na cabeça. Há três coisas que não podem ser modelo de vida para os cristãos: o ter, o poder e o prazer com consequências. Em vez do poder, devem ter a capacidade de servir. Por isso, seja quem for que venha aqui, eu peço que sirva a comunidade. Depois, e em relação ao ter, peço que se distribua. Ter bens não é pecado, o que é pecado é não os distribuir ou não os administrar corretamente e pensando nos que não os têm. E, finalmente, o prazer. O prazer com consequências graves é negativo. O alcoolismo, a droga, o sexo anárquico, o jogo. Tudo isto é tramado porque traz consequências dramáticas. 

Os ricos e poderosos também têm angústias?

Têm. E quando têm vêm desabafar e nós ajudamos. Ultimamente, estou a dedicar-me muito a atender pessoas que têm muitos problemas. Ouço muito e depois dou uma palavra ou outra que pode ser orientadora para a superação das angústias. 

Atualmente, o que mais perturba as pessoas?

A instabilidade deste mundo. Antes, as pessoas nasciam, cresciam, desenvolviam-se e as coisas seguiam direitinhas. Hoje há uma instabilidade gigante, somos cidadãos do mundo. Imagine uma avó e um avô que deixam de ver os filhos e os netos. Olhe o meu caso: de repente, tenho sobrinhos na Indonésia, em Taipé, nos EUA, no Porto, outra na Madeira. Em Lisboa estão só dois. A vida de hoje é assim. E isto traz instabilidade, angústia, solidão. A solidão é um drama muito grande para o ser humano.