Há um problema, um escândalo, uma sentença ou um acórdão de que se não gosta ou que dá polémica? Há um crime que impressiona, um caso que indigna, uma vaga de insegurança, um sentimento de intranquilidade? Ou há qualquer outra coisa que altera o remanso dos dias (o que acontece quase todos os dias, aliás, ao ponto de o remanso ser já quase um vestígio arqueológico)? Então, faz-se uma lei, muda-se uma lei, aperfeiçoa-se uma lei. Ou dá-se-lhe uns toques, mais dureza, mais 12 vírgulas ali e meia dúzia de pontos de exclamação aqui, dois pontos finais a menos ou a mais, muda-se aqui, tira-se acolá. Ou substitui-se mesmo a dita, que a culpa é sempre da lei – ou porque falta, ou porque abunda, ou porque está manca e precisa de correção ortopédica. O que há a fazer é, sempre, mexer na lei, alterar a lei, fazer lei, matar lei. E rapidamente e em força, e fazer alarido disso, porque os tempos vivem da rapidez e da propaganda. Há um problema, não gostaram disto ou daquilo, há quem rasgue as vestes e exclame, grite ou murmure? Não se preocupe o bom povo que já há lei no forno, está a sair. E pronto, dormi descansados, que o legislador vela por todos, ámen.
A atividade legiferante é – tem sido e temo que vá continuar a ser – uma espécie de benzedura social. Podia dar-vos, só com a curta diacronia de uma década, dezenas (ou mais) de exemplos. O legislador tornou-se um ser hiperativo, e supersticioso (desconfio), e tudo se resolve com um jeitinho na lei ou com uma nova lei. Há leis para tudo, como há benzeduras para tudo. Dói a cabeça? Lei. Mau-olhado, inveja, quebranto, ciúme, desemprego? Lei. Prisão de ventre, más-línguas, depressão, salário rombo, calvície, perna torta, lombrigas? Lei. O sincretismo religioso deu, entre outros frutos, a benzedura. O caldo cultural da modernidade (carregado de hipermediatização, achismo, superficialidade, falta de sentido de tempo, propaganda, gritaria, et caetera) deu a feitura e a alteração da lei. O legislador é, realmente, um dos grandes benzedores do nosso tempo.
Há um certo acórdão da Relação do Porto sobre uma violação (que parece que não é, afinal, ou talvez sim – não sei, não fui a correr ler para achar isto ou aquilo, e menos ainda caio no achismo sem ler), e discute-se, grita-se e esperneia-se? Então, pronto, está visto, cá vai benzedura, ou seja, cá vai uma lei nova ou uma alteração na lei, assim rapidamente e em força, tudo bem embrulhado e, de preferência, estridentemente anunciado. Não é preciso pensar muito, nem tentar ver para lá dos títulos e da superfície, nem sequer saber se há mesmo um problema e, havendo, onde está. Ná, nada disso, mexa-se na lei e já está! E depois admirem-se da manta de retalhos, da confusão legislativa, da precipitação, dos buracos, das soluções tortas. E não estou a agourar, não é mau-olhado, muito menos quebranto. São só vários anos de experiência e de observação. E não preciso de nenhuma benzedura. E ainda menos de tanta alteração na lei. Cruzes. Sossega, meu pajé!
Escreve quinzenalmente à sexta-feira