Eleições no Brasil. Trafegando no acostamento

Eleições no Brasil. Trafegando no acostamento


Bolsonaro e Haddad passam à segunda volta. Numa das presidenciais mais extremadas da história brasileira pós-ditadura, o centro foi quem mais sofreu. O candidato do PT tem muitas contas para fazer até ao dia 28, embora por mais movimentações que faça, faltam-lhe números


Quem circula pelas estradas brasileiras está acostumado a ver um aviso de proibição de trafegar no acostamento, que em português de Portugal seria a proibição de circular na berma. Pois as eleições presidenciais brasileiras de domingo mostraram um país dividido entre duas bermas enormes, onde aquilo que seria a estrada, o centro, acabou por ficar reduzido a uma faixa de rodagem

Foram umas eleições entusiasmadas e extremadas, quase de claque de futebol, entre um nós contra eles – entre Jair Bolsonaro, que se transformou no desejado para derrotar o PT nas urnas, e Fernando Haddad, o homem que serviu de duplo de Lula da Silva, quando o ex-presidente foi impedido de concorrer por estar preso e condenado em segunda instância a 12 anos e um mês de prisão.

Umas eleições onde os candidatos do centro sofreram por serem equilibrados, ponderados, por defenderem reformas e não revoluções, por se quererem afirmar razoáveis, num discurso de alternativa política dentro de um marco democrático, em tempos de voto de protesto.

Nem Ciro Gomes (antigo governador do Ceará, candidato pela terceira vez à presidência), nem Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, do PSDB, conseguiram captar o voto descontente com o PT e chegarem à segunda volta. E se Ciro ainda alcançou um resultado honroso, terceiro com 12,5% (e 13,3 milhões de votos), Alckmin obteve o pior resultado da história do partido em eleições presidenciais (4,8%) com pouco mais de 5 milhões de votos, num universo de 147 milhões de eleitores.

Alckmin e Ciro foram vítimas do clima crispado, sem espaço para o voto útil, apenas para cerrar fileiras entre Bolsonaro (46%) e Haddad (29,3%). Bolsonaro,  deputado federal há 28 anos, que em qualquer outra eleição anterior seria apenas um colorido candidato, conseguiu transformar-se no rosto da esperança de uma grande parte da população ressentida com os governos do PT. O seu discurso ultraconservador, politicamente incorreto, tornou-se, nestes tempos das redes sociais, um fenómeno ‘memístico’ (a mimetização através do meme), ajudando a consolidar o apoio do candidato que, sem peso televisivo (o seu pequeno partido, o PSL, tinha apenas oito segundos no tempo de antena oficial) foi capaz de obter 49,2 milhões de votos na primeira volta e é mais do que favorito para conseguir eleger-se presidente do Brasil na segunda volta a 28 de outubro.

Contava-me uma pessoa, muito admirada pelo fenómeno, que o entusiasmo à volta de Bolsonaro é tanto que, num país onde os apoiantes só vestem as camisolas que lhes são oferecidas pelos candidatos, os seus eleitores estão a comprá-las aos magotes: seja a do Brasil com uma mancha de sangue, imitando a que o candidato tinha quando foi esfaqueado, seja uma outra negra inspirada nos filmes de  “O Padrinho” – “O Poderoso Chefão”, no título brasileiro -, uma com uma metralhadora ou aquela com o trocadilho “É melhor Jair se acostumando”.

As acusações de violência no casamento, de vitupérios contra mulheres e homossexuais, mesmo a contradição de um homem que defende a instituição familiar, a Igreja Evangélica, mas que se casou três vezes e teve dois filhos extraconjugais, não parecem afetar o apoio, antes pelo contrário: “Bolsonaro é como todo o mundo, tem problemas como todos nós”, dizia-me outra pessoa na cidade de Pombal, no sertão da Paraíba (zona pobre de um dos mais pobres estados do Brasil), onde Bolsonaro nem sequer ganhou, derrotado por margem considerável – 40,95% a 32,55%.

O voto em Bolsonaro é também um gigantesco protesto contra o estado a que chegou a política no Brasil, as marcas da Operação Lava Jato – que levantou o véu sobre a promiscuidade pornográfica entre atores políticos e empresas e os cofres do Estado – e as feridas que já tinham ficado expostas no processo de impeachment.

Bolsonaro conseguiu transformar-se no messias do Brasil (imagem importante tendo em conta o peso cada vez mais considerável do voto evangélico), aquele que poderá trazer a redenção ao espaço político corrompido. E apesar de nenhum partido ficar incólume nos escândalos de utilização indevida do dinheiro público é sobre o PT que recai grande parte do ónus do estado a que se chegou e tudo vale para o afastar do poder, de onde só saiu nos últimos dois anos por causa do impeachment a Dilma Rousseff.

Com o país em crise económica, crescendo minguamento, o total descrédito das instituições públicas, e uma insegurança generalizada que fez com que no primeiro semestre deste tenham sido assassinadas mais de 26 mil pessoas, não admira que o discurso duro de responder à violência com mais violência agrade a uma percentagem muito alta do eleitorado. Nas passeatas e carreatas de apoio a Bolsonaro é comum ver as pessoas a imitarem o gesto do candidato usando os braços como se tivessem uma espingarda.

 

Haddad à procura do centro e de um milagre

Chegou a pensar-se nos últimos dias de campanha, com sondagens quase diárias a mostrarem uma subida contínua das intenções de voto, que Bolsonaro conseguiria mesmo a vitória na primeira volta. Com Ciro Gomes estagnado, sem subir, nem descer, Haddad lá conseguiu mobilizar o eleitorado do PT (ainda é apesar de tudo e de longe o partido mais popular, de acordo com uma sondagem do Ibope publicada a 22 de agosto, com 29% de preferências, mais do que todos os 34 outros partidos que concorrem a esta eleição juntos) e garantir uma segunda volta e o seu lugar nela.

Mas isso foi a primeira volta, a matemática da segunda volta parece muito mais complicada para o lado do PT. Não se trata de fazer contas e ver onde se pode ir buscar o resto dos votos para a vitória. É que, aparentemente, não há onde ir buscá-los. Mesmo que em hipótese remota o eleitorado de Ciro passe todo para Haddad (o que é pouco provável), que os votantes de Marina Silva (1%) escolham engolir o sapo e votar PT e somando já o apoio declarado de Guilherme Boulos (0,6%), não chega para derrotar Bolsonaro.

Porque mesmo que os eleitores que votaram em candidatos da direita não escolham Bolsonaro na segunda volta, a sua abstenção, voto branco ou nulo serve ao deputado federal para ser eleito, porque os seus mais de 49,2 milhões de votantes passam a valer uma percentagem maior no universo de votos válidos.

Até mesmo se por uma estranha conjunção de astros, a bem da República (algo que não fizeram no impeachment, em que votaram favoravelmente a destituição da presidente) e contra o radicalismo de elogio à ditadura e ameaças de autogolpe de Bolsonaro, a cúpula do PSDB resolvesse apoiar Haddad, ainda assim as contas não chegavam para assegurar que o antigo ministro da Educação de Lula chegasse ao Palácio do Planalto. Além de que mesmo Alckmin e a direção do partido decidisse algo estranho como isso, era preciso ver se o eleitor que ficou com o candidato do PSDB até ao fim estaria mesmo disposto a votar no candidato de um partido que não querem ver nem pintado.

Haddad quer introduzir alterações para esta segunda volta, deixar de ser Lula (a frase até agora tem sido “Haddad é Lula” para lhe garantir a transferência da popularidade do ex-presidente) e passar a ser ele próprio, com discurso mais ao centro, capaz de captar um eleitorado moderado disposto a vencer a sua aversão ao PT pelo bem maior de defender a democracia.

Além disso, até aqui, por causa do incidente em que saiu esfaqueado, Bolsonaro acabou por ser menos atacado do que teria sido em condições normais, não foi escrutinado nos debates e ainda beneficiou do empurrão do martírio que casa bem com a sua inventada imagem de messias. Na segunda volta tudo poderá ser diferente.