Quando, após o final da I Grande Guerra, o primeiro-ministro inglês David Lloyd George, prometeu aos gregos ganhos territoriais à custa do desmembramento do Império Otomano, que combatera do lado derrotado, a inimizade entre os povos dos dois lados do mar Egeu recrudesceu de forma incontrolável. Justificando-se com a proteção da grande comunidade grega que habitava a Anatólia, a Grécia voltou a sonhar com o restabelecimento da milenar ideia da Grande Grécia, conceito mais profundo do nacionalismo helénico. Em maio de 1919, um contingente de 20 mil soldados gregos atacou Esmirna. O conflito iria prolongar-se pelos três anos seguintes. As atrocidades multiplicaram-se de parte a parte. O sonho da Grécia desfez-se com a vitória dos turcos, apoiados pela União Soviética. Os territórios subtraídos aos otomanos acabaram por ser incorporados na nova Turquia, reconhecida como estado soberano. Franjas da população de cada país dentro das fronteiras do outro foram trocadas.
Vamos, agora, até maio de 2013. Istambul está a ferro e fogo. A polícia carrega sobre os manifestantes que se opõem ao reerguer de instalações militares no Parque Gezi. A praça Taksim entra pelos telejornais do mundo inteiro. É palco dos confrontos. Curiosamente, os quartéis que o governo turco quer recuperar tinham sido arrasados para que surgisse um campo de futebol em 1921: Estádio Taksim, berço da seleção turca e casa de vários clubes como, por exemplo, o Fernerbahçe, Besiktas e Galatasaray (que visita o FC Porto na quarta-feira), ou PAOK, de Salónica, e AEK, de Atenas (que recebe o Benfica na terça).
Não estranhem o facto de tais clubes terem uma raiz comum. Reparem no pormenor: PAOK é o acrónimo de Panthessalonikios Athlitikos Omilos Konstantinoupoliton, ou seja Pan-Thessaloniki Atlético Clube dos Constantinopolitanos; entretanto, AEK vem de Athlitiki Enosis Konstantinoupoleos, que se pode traduzir por União Atlética de Constantinopla. Ou seja, tanto portistas como benfiquistas irão defrontar clubes nascidos na antiga Bizâncio, depois Constantinopla, agora Istambul. Bem podiam os The Four Lads cantar, em 1953: «Istanbul was Constantinople/Now it’s Istanbul, not Constantinople/Been a long time gone, Oh Constantinople/Now it’s Turkish delight on a moonlit night…»
PAOK e AEK são, desta forma, uma espécie de gémeos. Três jovens intelectuais da comunidade grega de Istambul – K.D. Kostarakis, I.A. Zervoudakis and A.K. Stefopoulos – fundaram um clube desportivo em 1877, o Clio. Em 1914, o Clio foi refundado, se assim podemos dizer. Tal como diz a canção, Pera já não é Pera, é Beyoglu. Falo de um dos bairros mais excitantes daquela que já não é Constantinopla. Coração da vida noturna e do entretenimento, foi aí que o Clio se tornou Pera. Muitos dos membros da comunidade grega já tinham regressado à Grécia, primeiro a Salónica e, em seguida, a Atenas. Com a troca populacional de 1923 – não foi por acaso que a música Instambul Not Constantinople surgiu 30 anos depois – a maioria dos jogadores e dirigentes do Pera voltaram à pátria. E os clubes gregos de Istambul foram extintos.
Em casa…
Nos anos que se seguiram, o AEK de Atenas e o AEK de Salónica surgiram no plano desportivo graças ao regresso dos que anteriormente tinham feito funcionar o Pera. Não deixaram Istambul em vão e sem recordações. No emblema dos novos clubes reinava a Dikefalos Aetos, a águia das duas cabeças, uma virada para ocidente e a outra para oriente, símbolo da dinastia Palaiologos, a última do Império Bizantino.
O AEK de Salónica viveria uma cisão da qual saiu o PAOK. A rivalidade foi curta. O PAOK não tardou a assimilar os que tinham ficado no AEK. Já o Pera transformou-se no Beyoglu. Pode ser um clube amador, de futebol precário, mas ostenta orgulhosamente o título de clube mais antigo da Turquia.
1923 foi, também, o ano da fundação da Federação Turca de Futebol, e os primeiros jogos da nova seleção da Turquia tiveram todos lugar o Estádio Taksim. Mas o campeonato nacional só começou a ser disputado na época de 1959-60. Se a maioria dos gregos que se mantiveram em Istambul após a repartição passaram a apoiar e a integrar o Fernerbahçe, o Galatasaray nasceu da boa vontade dos alunos do Liceu de Galatasaray, uma das mais antigas e prestigiadas escolas turcas cuja criação se perde na noite dos tempo de 1481 quando o sultão Bajazeto II ergueu a Galata Sarayi Enderun-u Hümayunu, a Escola Imperial do Palácio de Galata. Na atualidade é um colégio profundamente restrito em regime de internato que apenas admite anualmente 100 dos melhores 500 de cerca de um milhão de candidatos.
O Beyoglu é, tudo o indica, o clube de futebol mais antigo do país, mas o Galatasaray acena com o primeiro troféu interclubes ganho na Turquia. Os registos falam de uma Union Club Cup posta em jogo no dia 31 de Janeiro de 1909 no Union Club Field em Kadiköy, tempo em que os ingleses e os franceses de Istambul se responsabilizavam pela vivência do jogo na cidade. A vitória frente ao Kadiköy Football Association, assim mesmo, tão britânico, por 4-0, deu brado. Tevfik Fikret, o reitor da escola, e Horace Hermitage, o primeiro treinador do Galatasaray, formaram um conjunto de grande heterogeneidade, incluindo bósnios, gregos e, como não podia deixar de ser, muitos ingleses. Ali Sami Yen, um dos seus mais distintos fundadores, declarou como objetivo: “Jogarmos juntos sob um emblema e com um nome que fique para sempre, batendo todos os clubes não turcos!”
A razão era simples: sem adversários compatriotas, inscreveram-se na Istambul League que era disputada por clubes gregos, franceses e ingleses da antiga Constantinopla. Hoje, afirmam-se com o clube do orgulho pátrio. Não deixam, no entanto, de ter uma origem internacional. Afinal, Galata era o nome da cidadela genovesa que existia no atual bairro de Kardiköy, distrito de Beyoglu. Isso mesmo: antigo distrito de Pera.
Istambul pode ser uma cidade enorme, mas o futebol precisou de tempo para se espalhar.