Lisboa vivida na clandestinidade


Contra o pastel de nata pré-cozido e servido em tabuleiro de MacDonald’s, contra o salmão antibiotizado e com batata frita, contra o sangue industrial congelado para a cabidela à l’ ASAE, há quem resista!


Lisboa está a morrer a grande velocidade, vítima da doença do sucesso e das hordas de turistas que procuram uma Disneylândia para adultos. O “ground zero” situa-se nos bairros históricos, num polígono devastado definido pelos eixos Marquês de Pombal–Terreiro do Paço e Santa Apolónia–Belém.

As vítimas são muitas mas as mais sofridas são as que desapareceram às mãos de uma neo-cozinha típica portuguesa para turista, em tudo semelhante à “junkfood” internacional e onde pontificam os congelados de pizza, hambúrguer e batata frita.

A resistência contra o totalitarismo da gastronomia para selvagens começa a organizar-se pouco a pouco. Como em todos os movimentos de resistência, a clandestinidade é fundamental para garantir a sobrevivência da autenticidade. E indispensável para evitar que os resistentes sejam dizimados pelas hordas selvagens de turistas de “smartphone” em punho em busca da imortalidade das experiências únicas.

Pela Lisboa que resiste há casas clandestinas, salas e quartos onde se amesenta com brio, gozo e discrição. Nada as distingue de outras casas, apartamentos e salas. Não há publicidade, nem luminoso, nem anúncio, nem pancarta, muito menos nome ou afixação de menu no exterior. Há nestas casas convenientes cozinhas de outros mundos, muitas vezes noutras línguas, com profusão de fotografias ou simples apontar dos pratos que podem estar no forno da cozinha ou dispostos em cima do aparador.

Por estes dias os meus passos têm-se encaminhado para a Chinatown lisboeta, sita à Mouraria. Há escadas esconsas, algumas sobreviventes ao terramoto, que conduzem a terceiros e quartos andares com vistas deslumbrantes e cheiros especiais. Por aí descobri uma cantina sínica, maravilhosa na simplicidade e na qualidade dos ingredientes, abundante nas quantidades e na desfilar dos pratos populares de Cantão. O serviço de vinhos é limitado a um produtor e meia garrafa mas há escolha de bebidas frescas no frigorífico da família.

Perto do largo do Caldas há num discreto rés do chão uma cachupa rica capaz de nos fazer voltar a acreditar na bondade da espécie humana.

A Santos há um terraço interior onde se podem comer camarões frescos em cru, com a bestialidade do esvaziar da cabeça estando a bicheza ainda viva.

A tradição das casas de pasto clandestinas já foi via de recurso de restaurantes tradicionais. O saudoso Isaura à avenida de Paris sofreu em tempos um período de obras de aggiornamento que levou o senhor Costa, supremo comandante daquela nau e escanção ímpar, a desviar durante algumas semanas a clientela para um apartamento no prédio ao lado do restaurante. Os comensais entravam num típico hall de casa burguesa e eram distribuídos por uma sala e dois quartos, olhando-se com a desconfiança que na nossa casa testemunharíamos à chegada, à hora da refeição, de convidados não anunciados e manifestamente famintos.

Na minha memória pontifica um ensopado de borrego com hortelã da ribeira, comido num apartamento em Benfica, onde no início do milénio se aceitavam reservas transmitidas por um telefone de baquelite negra enquanto o cliente contemplava a glória passada de uma burguesia arruinada e que se mantinha pelo viço e esmero da velha cozinheira da família.

Para a resistência amanhã é sempre longe de mais. Resista e vá hoje comer a uma casa clandestina. Lisboa agradece.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990