Tanzanites e afins


O mundo das televendas e publicidade a meio da tarde


Segunda-feira: o direto já começou, mas a apresentadora, cara conhecida da televisão, ainda não tem sinal. Passados uns instantes de problemas técnicos, lá começa o pregão habitual das três e meia: “Especial tanzanites e diamantes, a não perder… hoje temos as últimas joias com diamantes e tanzanites. Stock muito limitado. Dezassete tanzanites, quase quatro quilates! Imagine-se o valor desta joia… duas pedras extremamente preciosas. A tanzanite, descoberta na Tanzânia, é já considerada uma pedra em vias de extinção. Pedra extremamente valiosa e rara.” Terça-feira: “Temos hoje as nossas joias a preços promocionais.” A apresentadora roda a caixinha, faz suspense, e sai um pendente em prata de lei com diamantes. Minutos mais tarde, lá aparece o anel com tanzanites, pedra preciosa de que ouvi falar pela primeira vez há uma semana, no mesmo bloco de televendas, e desde então continua a aparecer quase todos os dias. Apesar de estar em vias de extinção – “mil vezes mais rara do que o diamante” – e de já só terem as últimas peças do stock à disposição. Das duas uma: ou a pedra não é assim tão rara ou somos uns felizardos que veio tudo cá parar a preço de saldo – “diretamente da Tanzânia, sem intermediários e para enriquecermos a nossa coleção de joias”, diz a apresentadora. Quem não tem uma coleção de joias em Portugal? Também se não tem, digo eu, uma semana a ligar e a comprar neste bloco de televendas já recheiam um cofrezinho, entre tanzanites, diamantes e granadas. E a maioria das peças são a “menos de 100 euros”, que é isso?

Bem sei que é a dinâmica das televendas e só vê e compra quem quer, mas devia haver alguma contenção nos adjetivos, sobretudo quando não é difícil imaginar que, a meio da tarde, a maioria dos espetadores serão idosos que, vendo uma cara conhecida e promessas de bom investimento e de preços mais baixos de sempre, repetidos ao longo de quase uma hora, podem ser sugestionados a comprar aquilo de que não precisariam.

As tanzanites – peça ligada à história da Tiffany, recuperada este milénio depois de dúvidas em torno da sua exploração na Tanzânia – estão longe de ser exemplo único do marketing agressivo na TV e não têm faltado avisos, mas nada parece mudar. Nos canais abertos ou no cabo, os programas mais e menos trash são pontuados por estes momentos de bombardeamento comercial, sempre com os mesmos chamarizes: bom, barato e, ainda por cima, exclusivo. Nada melhor para alimentar as expetativas de quem tem pouco para fazer render. Suponho que quem tem muito não compra joias pela TV. Os apresentadores dos programas da manhã e da tarde continuam a desdobrar-se em trocadilhos para introduzir os números de telefone dos seus concursos e respetivos prémios em cartão – de vez em quando lembram que as pessoas devem ligar em função das suas possibilidades, um sossego para a alma. Depois, volta e meia, lá aparece o senhor dos suplementos que, devidamente acompanhado pelo apresentador de serviço, faz a apologia de cápsulas que eliminam o colesterol, prolongam a vida e só não aspiram a casa porque a ciência ainda não chegou lá. Se fosse um senhor a promover caixas de donuts com cobertura, caíam-lhe todas as instâncias em cima mas, assim, é acreditar que ou faz bem a toda a gente ou não faz nada, e nesse caso só sofre a carteira. Um problema aparentemente menor num país onde os idosos já são dos mais pobres da Europa.

Há dois anos, um artigo na “Sábado” falava dos viciados em chamadas de valor acrescentado, não só idosos mas também desempregados que, no desespero, gastam o que têm a tentar que lhes saia alguma coisa. Apesar de a faturação das estações televisivas com as chamadas de valor acrescentado estar em quebra, no ano passado, Impresa e Media Capital faturaram 1,9 milhões de euros por mês, soube-se este verão. Mais impressionante só a raspadinha, em que os portugueses gastam 4 milhões de euros por dia, e há também quem já tenha alertado para o risco de adição. Num artigo da Beatriz Dias Coelho publicado há uns meses aqui no i, um psiquiatra que tem estudado o tema identificava dois fatores que podem alimentar a dependência: o ganho ou a perda serem imediatos e o prémio mínimo ser o suficiente para jogar de novo. Há dias dei com um café de supermercado com uma mesa destinada a raspar cartões – o fenómeno está mais do que à vista de todos. O das televendas insistentes e companhia é só para quem tem vagar para umas horas de zapping a meio do dia, o que ainda dá uma boa parte do país a assistir.

 

Jornalista. Escreve à sexta-feira
 


Tanzanites e afins


O mundo das televendas e publicidade a meio da tarde


Segunda-feira: o direto já começou, mas a apresentadora, cara conhecida da televisão, ainda não tem sinal. Passados uns instantes de problemas técnicos, lá começa o pregão habitual das três e meia: “Especial tanzanites e diamantes, a não perder… hoje temos as últimas joias com diamantes e tanzanites. Stock muito limitado. Dezassete tanzanites, quase quatro quilates! Imagine-se o valor desta joia… duas pedras extremamente preciosas. A tanzanite, descoberta na Tanzânia, é já considerada uma pedra em vias de extinção. Pedra extremamente valiosa e rara.” Terça-feira: “Temos hoje as nossas joias a preços promocionais.” A apresentadora roda a caixinha, faz suspense, e sai um pendente em prata de lei com diamantes. Minutos mais tarde, lá aparece o anel com tanzanites, pedra preciosa de que ouvi falar pela primeira vez há uma semana, no mesmo bloco de televendas, e desde então continua a aparecer quase todos os dias. Apesar de estar em vias de extinção – “mil vezes mais rara do que o diamante” – e de já só terem as últimas peças do stock à disposição. Das duas uma: ou a pedra não é assim tão rara ou somos uns felizardos que veio tudo cá parar a preço de saldo – “diretamente da Tanzânia, sem intermediários e para enriquecermos a nossa coleção de joias”, diz a apresentadora. Quem não tem uma coleção de joias em Portugal? Também se não tem, digo eu, uma semana a ligar e a comprar neste bloco de televendas já recheiam um cofrezinho, entre tanzanites, diamantes e granadas. E a maioria das peças são a “menos de 100 euros”, que é isso?

Bem sei que é a dinâmica das televendas e só vê e compra quem quer, mas devia haver alguma contenção nos adjetivos, sobretudo quando não é difícil imaginar que, a meio da tarde, a maioria dos espetadores serão idosos que, vendo uma cara conhecida e promessas de bom investimento e de preços mais baixos de sempre, repetidos ao longo de quase uma hora, podem ser sugestionados a comprar aquilo de que não precisariam.

As tanzanites – peça ligada à história da Tiffany, recuperada este milénio depois de dúvidas em torno da sua exploração na Tanzânia – estão longe de ser exemplo único do marketing agressivo na TV e não têm faltado avisos, mas nada parece mudar. Nos canais abertos ou no cabo, os programas mais e menos trash são pontuados por estes momentos de bombardeamento comercial, sempre com os mesmos chamarizes: bom, barato e, ainda por cima, exclusivo. Nada melhor para alimentar as expetativas de quem tem pouco para fazer render. Suponho que quem tem muito não compra joias pela TV. Os apresentadores dos programas da manhã e da tarde continuam a desdobrar-se em trocadilhos para introduzir os números de telefone dos seus concursos e respetivos prémios em cartão – de vez em quando lembram que as pessoas devem ligar em função das suas possibilidades, um sossego para a alma. Depois, volta e meia, lá aparece o senhor dos suplementos que, devidamente acompanhado pelo apresentador de serviço, faz a apologia de cápsulas que eliminam o colesterol, prolongam a vida e só não aspiram a casa porque a ciência ainda não chegou lá. Se fosse um senhor a promover caixas de donuts com cobertura, caíam-lhe todas as instâncias em cima mas, assim, é acreditar que ou faz bem a toda a gente ou não faz nada, e nesse caso só sofre a carteira. Um problema aparentemente menor num país onde os idosos já são dos mais pobres da Europa.

Há dois anos, um artigo na “Sábado” falava dos viciados em chamadas de valor acrescentado, não só idosos mas também desempregados que, no desespero, gastam o que têm a tentar que lhes saia alguma coisa. Apesar de a faturação das estações televisivas com as chamadas de valor acrescentado estar em quebra, no ano passado, Impresa e Media Capital faturaram 1,9 milhões de euros por mês, soube-se este verão. Mais impressionante só a raspadinha, em que os portugueses gastam 4 milhões de euros por dia, e há também quem já tenha alertado para o risco de adição. Num artigo da Beatriz Dias Coelho publicado há uns meses aqui no i, um psiquiatra que tem estudado o tema identificava dois fatores que podem alimentar a dependência: o ganho ou a perda serem imediatos e o prémio mínimo ser o suficiente para jogar de novo. Há dias dei com um café de supermercado com uma mesa destinada a raspar cartões – o fenómeno está mais do que à vista de todos. O das televendas insistentes e companhia é só para quem tem vagar para umas horas de zapping a meio do dia, o que ainda dá uma boa parte do país a assistir.

 

Jornalista. Escreve à sexta-feira