É a História, estúpido!


Especialmente quando falamos de tragédia, a erosão da memória é um enorme perigo, pois a História tende a retornar, e mais vezes na versão trágica do que na versão de farsa, infelizmente para o dito espirituoso de Marx e, sobretudo, para nós


Não fora o muito avisado conselho dos meus pais (que sabiam bem mais e viam muito melhor do que eu) e muito provavelmente eu teria ido para a universidade estudar literatura, filosofia ou História. Não fui, embora o direito tenha muito delas (e talvez também por isso me tenha feito e me faça muito feliz), mas ficou cá o bichinho. Nos últimos dias, tem sido mais a História que me tem vindo à cabeça, mas começo o percurso deste curto texto recorrendo à literatura. Às tantas, no seu por vezes estranho e quase sempre pesado e perturbador romance “Gente Independente”, Halldór Laxness escreve: “Mas os primeiros dias são sempre os piores, e o grande alívio reside em saber que o tempo apaga tanto os crimes e o pesar como o próprio amor.” É verdade, embora talvez nem sempre apague completamente, mas pelo menos esbate, esconde, ou serena, ou coloca em tons de sépia, o que seja, depende. Mas isso não acontece só com a memória individual, acontece também com a coletiva. E, especialmente quando falamos de tragédia, a erosão da memória é um enorme perigo, pois, e além do mais, a História tende a retornar, e mais vezes na versão trágica do que na versão de farsa, infelizmente para o dito espirituoso de Marx e, sobretudo, para nós. 

Bem sei que os tempos não vão de feição para grandes estudos nem profundidades, mas por favor estudem História, ensinem, divulguem, ajudem (ou obriguem mesmo) a saber, a pensar, a refletir, sobretudo os pais e os pedagogos – pelo menos o essencial, o osso das coisas, tirem as enxúndias (como diria o O’Neill). Quanto mais e melhor conhecermos e compreendermos o passado, melhor percebemos o presente e menos mal fazemos o futuro. As gavetas da memória coletiva estão carregadas de papel, lembranças, muita tralha, mas também de coisas essenciais. Rasguem, limpem, arrumem, mas vejam o que está lá de mais importante, recordem, olhem, pensem. 

Vem isto a propósito, além de valer (se é que vale alguma coisa) como simplezinha teoria geral, de três coisas que nos últimos oito dias, pelo menos, têm estado no palco noticioso – embora, naturalmente, em segundas ou terceiras camadas, que a primeira é, como sempre, dominada pelas novelas judiciárias, as do futebol e as da política de paróquia, variando a ordem de preferência consoante o episódio. Falo do fenómeno Jair Bolsonaro no Brasil, das eleições na Suécia e da situação da Hungria governada por Orbán. Apenas três exemplos no palco global. Não é de agora o meu regresso à História, nem é apenas dos últimos tempos a minha inquietação (oh, nada disso), mas esta cresce, tem crescido, e cada vez mais o mundo me parece parecido com aqueles 14 ou 15 anos que vão do final da i Guerra Mundial até 1933 ou 34. A vós, estes sinais, os pontos aqui e ali a aparecer e a fazer linhas e ligações, et cetera, não vos recordam nada, não vos inquietam? Talvez bem mais importante do que a economia (para evocar a célebre frase americana que explica resultados de eleições) seja conhecer e pensar na História. Para não acabarmos estúpidos, ou mesmo mortos.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira
 


É a História, estúpido!


Especialmente quando falamos de tragédia, a erosão da memória é um enorme perigo, pois a História tende a retornar, e mais vezes na versão trágica do que na versão de farsa, infelizmente para o dito espirituoso de Marx e, sobretudo, para nós


Não fora o muito avisado conselho dos meus pais (que sabiam bem mais e viam muito melhor do que eu) e muito provavelmente eu teria ido para a universidade estudar literatura, filosofia ou História. Não fui, embora o direito tenha muito delas (e talvez também por isso me tenha feito e me faça muito feliz), mas ficou cá o bichinho. Nos últimos dias, tem sido mais a História que me tem vindo à cabeça, mas começo o percurso deste curto texto recorrendo à literatura. Às tantas, no seu por vezes estranho e quase sempre pesado e perturbador romance “Gente Independente”, Halldór Laxness escreve: “Mas os primeiros dias são sempre os piores, e o grande alívio reside em saber que o tempo apaga tanto os crimes e o pesar como o próprio amor.” É verdade, embora talvez nem sempre apague completamente, mas pelo menos esbate, esconde, ou serena, ou coloca em tons de sépia, o que seja, depende. Mas isso não acontece só com a memória individual, acontece também com a coletiva. E, especialmente quando falamos de tragédia, a erosão da memória é um enorme perigo, pois, e além do mais, a História tende a retornar, e mais vezes na versão trágica do que na versão de farsa, infelizmente para o dito espirituoso de Marx e, sobretudo, para nós. 

Bem sei que os tempos não vão de feição para grandes estudos nem profundidades, mas por favor estudem História, ensinem, divulguem, ajudem (ou obriguem mesmo) a saber, a pensar, a refletir, sobretudo os pais e os pedagogos – pelo menos o essencial, o osso das coisas, tirem as enxúndias (como diria o O’Neill). Quanto mais e melhor conhecermos e compreendermos o passado, melhor percebemos o presente e menos mal fazemos o futuro. As gavetas da memória coletiva estão carregadas de papel, lembranças, muita tralha, mas também de coisas essenciais. Rasguem, limpem, arrumem, mas vejam o que está lá de mais importante, recordem, olhem, pensem. 

Vem isto a propósito, além de valer (se é que vale alguma coisa) como simplezinha teoria geral, de três coisas que nos últimos oito dias, pelo menos, têm estado no palco noticioso – embora, naturalmente, em segundas ou terceiras camadas, que a primeira é, como sempre, dominada pelas novelas judiciárias, as do futebol e as da política de paróquia, variando a ordem de preferência consoante o episódio. Falo do fenómeno Jair Bolsonaro no Brasil, das eleições na Suécia e da situação da Hungria governada por Orbán. Apenas três exemplos no palco global. Não é de agora o meu regresso à História, nem é apenas dos últimos tempos a minha inquietação (oh, nada disso), mas esta cresce, tem crescido, e cada vez mais o mundo me parece parecido com aqueles 14 ou 15 anos que vão do final da i Guerra Mundial até 1933 ou 34. A vós, estes sinais, os pontos aqui e ali a aparecer e a fazer linhas e ligações, et cetera, não vos recordam nada, não vos inquietam? Talvez bem mais importante do que a economia (para evocar a célebre frase americana que explica resultados de eleições) seja conhecer e pensar na História. Para não acabarmos estúpidos, ou mesmo mortos.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira