À Espera de Godot. Venha de novo esse Beckett

À Espera de Godot. Venha de novo esse Beckett


Em início de nova temporada, regresso ao maior dos clássicos de Samuel Beckett. Na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, por David Pereira Bastos. A entrada é livre durante este fim de semana


Nada a fazer. A espera desespera, mas não aqui. Aqui, do lado do espetador sentado, à espera que eles, Vladimir e Estragão, acabem de esperar por ele. Godot. O senhor que não vem, e que virá sempre, em mais um regresso ao maior dos clássicos de Samuel Beckett. Desta vez com encenação de David Pereira Bastos. Sábado e domingo integrado no Entrada Livre com que arranca o Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, para esta nova temporada, e até 7 de outubro, na Sala Estúdio. 

Mas nada a fazer, dizíamos, entretanto com estes dois sentados no que poderia ser uma paragem de autocarro. Não que lhe tenham dado a volta, a Beckett, mas isto é 2018 e disso não nos alienaremos. Vladimir e Estragão ou Vladimir e Estragão em diminutivos, não importa, importa o fato de treino. Uniforme para os desprivilegiados deste tempo em que anos 90 são coisa de “há milhões de anos”, desse o tempo em que um tipo – estes dois tipos – ainda andavam “apresentáveis” a ponto de os deixarem subir à torre Eiffel. Não agora. Agora, Godot que os salve. Godot que não vem, não virá, disso já sabemos.

Dois tipos numa paragem de autocarro? Talvez, mas isto somos nós, imaginação a trabalhar perante o que pode ser tudo e ao qual David Pereira Bastos regressa a partir da tradução de José Maria Vieira Mendes (edições Cotovia, 2000). Encenador e ator em simultâneo, como Roger Blin na primeira vez em que “À Espera de Godot” foi encenado, no Babilónia de Paris, em 1953. Por todas as voltas, há sempre de se ir dar ao lugar de partida. 

Ou nem por isso, e explica o encenador: “Não o vejo como uma adaptação. Para fazermos uma adaptação teríamos que mudar coisas no texto e também não existe esse espaço. Nem sequer essa vontade ou essa necessidade. Acho que existe aqui um lugar semiabstrato no que diz respeito às personagens, ao sítio onde estão, ao contexto onde se inserem, que importa preservar. Eventualmente estes figurinos podem concorrer contra isso. Decidi trabalhar com uma proposta original, ou com uma proposta independente, na área dos figurinos e do cenário”, a cargo de Bruno Simão. Aqui também como ator, no papel de Lucky e do rapaz que aqui aparece na forma do que será provavelmente um pastor alado. Futurista, talvez. 

“O Bruno, que foi meu colega no curso de Atores da Escola Superior de Teatro e Cinema, tem acompanhado os espetáculos que encenei em Lisboa como fotógrafo e é uma pessoa com quem normalmente me aconselho sobre a dimensão plástica dos espetáculos que costumo fazer, fez-me esta proposta e achei-a muito interessante. Não existe propriamente uma intenção de fazer uma transposição para os dias de hoje. Inevitavelmente essa leitura surge do lado de quem vê. É um risco que não me importo de correr.”

Regressaremos aqui à pergunta que é a do próprio encenador no texto de apresentação do espetáculo. Que espaço sobra a criadores e artistas então perante um texto com tantas restrições impostas pelo autor? “Acho que o Beckett tem que se fazer como ele é, e isso faz muito sentido tendo em conta as propostas que ele lança. O grau de pormenor, a maneira criteriosa como ele escreve não só o texto que é dito como as didascálias e a descrição das ações cénicas, ao confrontares-te com os textos dele percebes porque é que durante o tempo de vida ele foi tão chato em relação a isso”, nota David Pereira Bastos. 

“Mas, embora tenhamos que fazer as coisas assim a obedecer, já passou algum tempo e parece-me que no contexto atual da arte, das artes performativas, das artes cénicas, quando nos surge um autor que faz uma imposição destas, como resposta eu pergunto-me ‘qual é então o lugar do encenador enquanto criador aqui?’. “Não acho que esse lugar não exista, mas acho que não é também bom para Beckett que sempre que se faz uma peça dele se esteja meramente a fazer aquilo a que às vezes chamo de arqueologia teatral. De que serve haver montagens diferentes de criadores diferentes se se tentar fazer sempre tudo igual?”

A resposta estará algures neste lugar do meio que resolve mas não desvirtua, que aproxima e não desfaz nunca. “Queremos, acima de tudo, fazer as coisas de maneira que ninguém nos venha multar. Não estamos muito interessados nisso. Estamos interessados, sim, em envolver-nos com os materiais, respeitando-os, mas de forma a que eles nos respeitem também a nós, já que estamos aqui a tentar desempenhar a nossa profissão de artistas, criadores, o que for.”