“Não procuro a perfeição.” A Valérie Massadian interessa o exato extremo oposto a isso. Daí que à partida para “Milla”, a sua segunda-longa metragem, tivesse apenas uma certeza: que no centro estaria uma mãe adolescente – no filme e na vida real, uma não atriz – com o seu filho, contra o mundo. “A solidão é muito violenta para estas miúdas e a sociedade não está consciente dessa violência”, notará a realizadora francesa. “Talvez o meu objetivo com este filme fosse dar espaço a raparigas que não o têm.” Mas no final, “Milla”, nome que toma a protagonista, Séverine Jonckeere, de 18 anos, que descobriu na costa norte francesa com o seu filho de dois, será sobre bem mais do que isso. Será sobre o amor, mais ainda: um filme sobre a coragem necessária para amar. “É preciso muita coragem para amar.”
Ouve-se muitas vezes dizer sobre um filme que só poderia ter sido realizado por uma mulher, mas há frequentemente algo de estranho nisso. Não em “Milla”.
Sou um bocadinho contra esse tipo de classificação por me parecer mais uma forma de guetizar as mulheres, como se se estivesse a dar-lhes um falso crédito por alguma coisa. À parte disso, não sejo que tenha a ver com ser mulher, acho que é uma questão de sensibilidade, e acho que qualquer ser humano, homem ou mulher, tem ambas as sensibilidades e que, dependendo da sua educação, cultura, etc., tem o seu lado masculino e feminino mais ou menos equilibrados. Acho que sou muito feminina por um lado e muito masculina por outro, sou um equilíbrio, e sinto que o lugar a partir do qual trabalho é muito feminino no sentido de confiar mais no instinto do que na razão.
Está a referir-se aos temas dos seus filmes ou à sua forma de trabalhar?
À forma como trabalho. À abordagem, à forma de lidar com as pessoas. E naquilo em que confio: confio nas emoções. Mas não acho que isso seja exclusivo de uma mulher. Acho que muitos homens têm um problema com as emoções [risos] mas é uma questão da sua história e de educação. Há muitos filmes feitos por mulheres que para mim são misóginas sem sequer perceberem, ao estarem a dar corroborar uma forma de pensar extremamente patriarcal à qual se submetem.
Uma questão muito evidente tanto neste filme como na sua primeira longa, “Nana”, é a forma como dirige crianças tão pequenas. Este bebé mal fala ainda. Como faz esse trabalho?
Não trabalhamo, deixo-os ser. Passamos muito tempo juntos e isso significa fazermos as coisas que se fazem todos os dias: comer, brincar, falar, discutir, pensar. O Ethan tem dois anos e meio e, para mim, é o que mais representa no filme. É o maior ator de todos. Não representa como um ator, representa como uma criança, mas faz coisas para nós, para a mãe. E a forma de trabalhar é dar-lhes o máximo de liberdade e o nosso trabalho é navegar ali. E editar, depois.
Filma mais por isso do que filmaria com um argumento mais rígido, mais estruturado à partida?
Não. Os casos em que filmámos mais foram, por exemplo, três manhãs dele a tomar o pequeno-almoço ou a vestir-se, a tomar banho, e depois escolhi uma. Não é muito interessante repetir cenas com uma criança porque vai aborrecer-se e vai começar a ficar demasiado consciente e a fazer coisas que já não têm interesse. Daí dizer que me cabe a mim navegar ao ritmo deles.
O que tinha quando partiu para a rodagem?
Não gosto de trabalhar com argumentos. Escrevo-os para conseguir financiamento para os filmes, só porque ninguém me daria dinheiro de outra forma. Só porque não posso dizer “olá, vou fazer um filme com uma mãe de 17 anos, confiem em mim e dêem-me dinheiro. Não. O argumento era completamente diferente – não a sua essência, a história. Mas não quero saber da história. A literatura é a história, não os filmes. Os filmes são outra coisa. O filme constrói-se realmente na montagem. Aqui, sabia que haveria três partes, três movimentos: a história de amor e a relação, depois a morte, o trabalho na fase em que está sozinha e não sabe bem o que fazer porque não está preparada para o mundo, e a última parte, com a criança em que a vida toma conta de tudo e a ausência continua lá, mas…
Por aí considera que a sua abordagem se aproxima do documental?
Não se liga a câmara à espera que qualquer coisa aconteça, não é assim que funciona, de todo. É um processo orgânico, que muda dependendo do que acontece que pode nem ser filmado, mas é tudo completamente fabricado. Muito fabricado, incrivelmente fabricado. Mesmo. E tudo é incrivelmente falso, e ao mesmo tempo nada falso. O que me interessa é o que é imperfeito, frágil. São escolhas. O que procuro não é a perfeição, acho a perfeição uma coisa morta. Conhecemo-nos bem, por isso sei que se pedir qualquer coisa à Séverine, para limpar, por exemplo, ela não vai querer fazê-lo, porque ela não é fácil. Portanto, todo o comportamento dela é muito real. Não é contra ele [Luc Chessel] não é contra a situação, é contra mim. Mas isso é um problema meu. Tudo o que parece muito “real”, é, de facto. Porque, sim, é seu ritmo, é sua maneira de falar dela, é a sua falta de jeito. No hotel, sabia que se lhe desse um fato para dobrar -“és uma empregada, como farias?” – que ela faria aquilo com todo o seu coração. E aquela falta de jeito, aquela fragilidade, tão facilmente julgada pelos outros – “és uma idiota, não tens educação, não sabes fazer nada, és inútil”… Não, não é: só queremos abraçá-la – eu, pelo menos, só quero abraçá-la.
Mas é justamente da imperfeição e da fragilidade de momentos como esse que vive este filme.
Isso é o filme. E era isso que sabia desde o início, o que queria dar-lhe ainda antes de ela [Séverine Jonckeere] estar no filme. Não sabia com que forma, com que história, mas sabia que queria que ela olhasse para o filme e se sentisse mais forte. E amada.
Como é que a descobriu?
Fui para a costa norte [francesa], uma zona muito pobre. As zonas mais pobres têm sempre um índice mais elevado de mães adolescentes, em qualquer país. Talvez por não haver futuro de repente ter uma criança seja uma maneira de ter um propósito para a vida, não sei.
Uma espécie de salvação.
SIm. O Ethan salvou a Séverine, o meu filho salvou-me, enfim. Fui a três abrigos em três cidades, apresentei-me aos diretores, mostrei o “Nana” às raparigas que viviam lá. A Séverine não vivia em nenhum deles, apareceu quando fiz um casting. Tinha distribuído panfletos por toda a parte com o meu filho à procura de uma mãe adolescente com uma criança e ela apareceu, por curiosidade.
O pai dele também morreu, como no filme?
O pai dele está morto. Não se pergunta a uma criança de dois anos onde está o pai e ela responde “o pai está no céu” sem que o pai esteja morto. Isso é um exemplo de como acho que o Ethan está mais consciente até do que eu. Para essa sequência escolhi um livro que ele tinha com uma família negra. Interessava-me perceber o que é que um miúdo branco pobre de dois anos reagiria, e ele nem quis saber. Não era disso que ele queria falar, queria falar da mamã e do papá, e do papá que estava morto e que estava no céu. Era disto que ele queria falar. E foi muito estranho porque quando falei sobre as três partes do filme à Séverine ela não disse nada e só um dia, depois, é que me contou que o pai do filho dela tinha morrido quando estava grávida.
Isso ajudou-vos na rodagem?
Muitas vezes até foi o oposto. Quando estávamos a filmar as cenas no hotel ela perguntou-me se aí ele já estaria morto e eu respondi que não sabia, não interessava. Não queria que fingisse estar deprimida. Se quisesse isso tinha escolhido uma atriz para o papel e dir-lhe-ia o que fazer. Isto é completamente diferente. Não há grande drama neste filme. Ou há, mas há muita dignidade na dor.
O que queria dizer com este filme?
Não quero dizer nada. Sei aquilo para que quero olhar, aquilo em que quero trabalhar. E queria ter uma jovem mãe porque sei que a solidão é muito violenta para estas miúdas e a sociedade não está consciente dessa violência. Quando ela ouve uma rapariga, provavelmente da idade dela, na brincadeira com rapazes na rua, ela fecha a janela porque sabe que já não pertence àquele mundo – mas não pertence ao dos adultos também. E estas coisas eu sei, as emoções que quero explorar. Não acho que fazer um filme tenha a ver com dar informação, para mim tem a ver com emoções, com deixar as pessoas com questões, pensamentos, sentimentos. Sei que muita gente tem dificuldade em lidar com o jeito dela, que pensam que se ri como uma idiota, algumas reações foram mesmo violentas, e isso é uma questão de classe. É uma grande violência. Talvez o meu objetivo com este filme fosse dar espaço a raparigas que não o têm. Mesmo. Talvez pelo percurso que tive queira abrir para outras mulheres portas que mulheres abriram para mim.
Mais do que sobre uma mãe adolescente, “Milla” é um filme sobre o amor, sobre toda a coragem necessária para amar. Nem todos temos a coragem destes dois miúdos.
É preciso muita coragem para amar. E, sim, absolutamente. E volto a trazer a questão das classes. Não há tempo para chorar, para se ter pena de si próprio. É uma dor silenciosa, invisível. Mulheres que vemos na rua, empregadas de limpeza em hotéis… é preciso muita coragem para acordar às quatro da manhã para ir para o trabalho, tomar conta das crianças, do marido. São fantasmas da sociedade moderna. Estou contente com o filme porque fi-lo em completa liberdade. Pago um preço por isso, mas sou uma privilegiada pela liberdade que tenho.