Mark Lehner. “Para entender as pirâmides tive de lhes voltar as costas”

Mark Lehner. “Para entender as pirâmides tive de lhes voltar as costas”


Em julho, o egitólogo protagonizou mais uma descoberta sobre a cidade perdida dos construtores das pirâmides


Mark Lehner nasceu em 1950 e passou mais de metade da vida a fazer escavações no Egito. Numa conversa telefónica a partir de Boston (EUA), o egiptólogo norte-americano recorda ao i o início da sua carreira e os projetos que desenvolveu e que, ao longo do anos, aprofundaram o conhecimento que temos sobre o Antigo Egito e, muito em particular, sobre o Planalto de Gizé. E se a sua iniciação neste admirável mundo antigo foi feita pelos caminhos da “pseudociência”, através das ideias do polémico médium norte-americano Edgar Cayce, como nos conta, o trabalho no terreno mostrou-lhe aquilo em que devia realmente acreditar – o estudo de académicos e antropólogos, baseado em evidências. Na sua visão, o que mais importa para compreender as pirâmides é “a forma como os egípcios conseguiram organizar as pessoas e os recursos” para a sua construção. E não tem dúvidas: nenhum hieróglifo retrata um helicóptero.

 

Sempre soube que queria ser egiptólogo?

Não soube sempre que queria sê-lo. Na verdade, a minha história iniciou-se quando comecei a interessar-me por ideias sobre o Antigo Egito, ideias que podem ser chamadas de alternativas e que são muito populares hoje em dia, sobre como a civilização da Atlântida foi para o Egito num período muito primitivo. Nessa altura, estava a viver no Dacota do Norte, que fica no meio dos EUA, e tinha muito pouco contacto com a egiptologia e a arqueologia, mas gostava de um médium em particular de nome Edgar Cayce, que fazia leituras místicas sobre o Antigo Egito e dizia que havia um Hall of Records [Câmara ou Salão de Registos, em português – uma biblioteca antiga] enterrado por baixo da Grande Esfinge de Gizé. Continha, dizia ele, todos os registos da civilização perdida da Atlântida. Além disso, eu cresci com isto porque os meus pais interessavam-se por esse homem e por esse tipo de ideias. Foi uma viagem feita de boleias que me trouxe onde estou hoje.

Em que sentido?

Desisti da faculdade e não sabia o que queria fazer. Tinha andado a formar-me em psicologia, religião e filosofia e estávamos nas décadas de 1960 e 1970, eram tempos muito turbulentos. Não me sentia preenchido com os meus estudos e então parti literalmente numa viagem à boleia, fiquei em casa de amigos, do Dacota do Norte, a Mineápolis, a Chicago, a Toronto, a Nova Iorque (risos) e acabei na Virgínia, fui à cidade de Virgínia Beach, onde fica a sede do centro do Edgar Cayce. Era a organização da qual os meus pais sempre tinham feito parte, por isso eu estabeleci-me lá e fiquei por dois anos. No fim desse período, arranquei numa viagem de jovens, todos nós interessados nas ideias do Edgar Cayce. Fomos a vários sítios na Europa e no Egito. E foi então que o meu verdadeiro interesse despertou. Quando regressei dessa viagem, li tudo o que havia sobre o Cayce e as suas ideias sobre o Egito e escrevi até um pequeno livrinho chamado Egyptian Heritage, que ainda pode ser comprado hoje no Ebay. Suponho que para a maioria dos estudiosos e académicos admitir isto seria um embaraço, mas o que posso dizer? Foi há 45 anos e foi aquilo a que chamo o meu período pré-dinástico (risos).

E quando voltou ao Egito?

O que aconteceu foi que acabou voltei a estudar, na Universidade Americana do Cairo. Formei-me em Antropologia – que estuda a cultura, o que foi bastante conveniente porque estava numa cultura estrangeira. Antes de voltar aos EUA e de ver os meus amigos e a minha família, estive no Egito durante dois anos e meio, e experienciei o que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva, que é o que acontece quando há algo que não joga com as nossas expectativas e as nossas crenças. Lembro-me que passeava pelo Planalto de Gizé, em redor das pirâmides e da Grande Esfinge sempre que podia, e nada batia certo com as ideias do Edgar Cayce, batia sim certo com a história que os egiptólogos e os arqueólogos estudavam e contavam. Isso foi um choque e uma deceção, que desencadeou em mim um interesse para o resto a vida: o porquê de as pessoas acreditarem em determinadas ideias – desde políticas, a espirituais, a religiosas.

É algo que o atrai?

Sim, um dia gostava até de escrever sobre a minha experiencia pessoal. Por que é a que as pessoas acreditam, como… Hoje, isso é especialmente importante, numa época em que as convicções políticas estão tão divididas nos EUA. Ao mesmo tempo que percebi que aquela não era a verdadeira história do Antigo Egito e que a real era a que os académicos contavam, parecia-me que como os egiptólogos se centravam tanto na arte, na língua e na arquitetura, havia uma abordagem arqueológica do Planalto de Gizé muito reduzida.

E foi essa a abordagem que decidiu seguir?

Foi. E apercebi-me de que encontrar informação nova sobre como as pirâmides tinham sido construídas ou onde estavam as pessoas era muito fácil porque os investigadores não estavam a procurar da forma certa e não passavam lá o tempo necessário. Este conjunto de fatores catalisou a minha carreira e a primeira coisa que fiz foi juntar-me a missões arqueológicas. Durante 13 anos, trabalhei em missões britânicas, francesas e alemãs.

Recorda-se da sua primeira missão?

Foi em 1976, quando a Fundação Edgar Cayce fez um donativo a um projeto arqueológico que estava a trabalhar num sítio chamado Nag Hammadi (Egito). Juntei-me às escavações e a razão pela qual a Fundação fez esse donativo foi porque, por um lado, me tinha dado uma bolsa, e por outro porque a missão era sobre uns livros gnósticos e místicos que os crentes na visão de Cayce pensaram que poderiam dar crédito de alguma forma às suas ideias. Quando estava nessa escavação, a maioria da equipa era constituída por especialistas do Novo Testamento, mas tive a oportunidade de trabalhar com um arqueólogo alemão que era uma das autoridades mundiais em igrejas cristãs antigas e foi com ele que aprendi a usar vários instrumentos. Como sempre tive queda para ser artístico e conseguia fazer desenhos arqueológicos, a partir daí juntei-me a outras missões.

Foi muito depois que conheceu Zahi Hawass [ex-ministro das Antiguidades do Egito]?

Foi no ano seguinte, em 1977, quando ele era inspetor nas pirâmides. E depois ajudei-o a organizar um projeto pago pela Fundação Edgar Cayce, cujo objetivo era fazer deteção remota na Grande Esfinge para ver se havia alguma coisa por baixo. Foi um projeto com o SRI International. Quando esse projeto terminou – de forma inconclusiva e sem ninguém ter conseguido encontrar o Hall of Records de que falava o Edgar Cayce -, eu e o Zahi começamos uma pequena escavação numa parte da Grande Esfinge onde os arqueólogos primitivos não tinham removido completamente os depósitos antigos. E nesse trabalho cruzei-me com vários arqueólogos e, ao mesmo tempo, continuei a trocar correspondência com as pessoas que tinham participado na expedição de Nag Hammadi. Através dessas interações comecei a frequentar o American Research Centre no Egito, que reúne as principais instituições dos EUA e do Canadá que desenvolvem trabalho arqueológico e académico no Egito. E então apercebi-me de que a Grande Esfinge nunca tinha sido devidamente mapeada.

Foi então que começou o seu projeto de mapeamento da Grande Esfinge?

Sim. E como eu tinha uma boa reputação com o meu trabalho, o American Research Centre concordou em financiar-me. E assim nasceu o ARCE Sphinx Project [projeto da Grande Esfinge do American Research Centre Egypt], que decorreu entre 1979 e 1983 e cujos mapas e toda a documentação foi, aliás, recentemente colocada online. Este trabalho foi muito importante porque permitiu-me ter um conhecimento mais amplo do Planalto – que mapeei, mais tarde, todo à mão. E comecei a indagar sobre o processo de extração da pedra e sobre onde é que os egípcios teriam ido buscar as pedras para a Grande Esfinge e o templo em frente, e estava também curioso em relação ao alinhamento com o pôr do sol nos equinócios e solstícios e isso levou-me a perceber que não existiam bons mapas do Planalto de Gizé. E assim comecei outro projeto: o mapeamento do Planalto de Gizé, que me deu um conhecimento do terreno, da forma do Planalto – a sua geomorfologia. E foi nessa altura que compreendi que, para entender as pirâmides, tinha de me virar de costas para elas, porque para as perceber é preciso saber quem foram as pessoas que as construíram, como se organizaram, onde era a sua cidade. Onde é que os trabalhadores moravam? Onde era feita a comida para tanta gente?

De certa forma, isso foi uma ideia original sua, não foi?

Bem, muitos egiptólogos antes de mim pensaram que algures ali estiveram os trabalhadores das pirâmides, mas nunca ninguém perguntou mesmo porquê. Vários egiptólogos muito respeitados diziam, já antes de mim, que provavelmente dezenas de milhares de pessoas estiveram envolvidas na construção das pirâmides, mas nunca ninguém se decidiu a escavar e a procurar a comunidade desses trabalhadores. A partir da década de 70 este tipo de arqueologia tornou-se mais importante, o que significou que depois dos grandes monumentos e das múmias, os arqueólogos começaram a querer saber como é que as pessoas viviam, como é que a sua sociedade e economia eram. Por isso, sim, foi um pouco uma ideia minha partir em busca das pessoas, mas também foi ideia minha onde procurar, porque quando se está à procura de uma cidade perdida, tem de se olhar para a paisagem para a localizar. Foi assim que usei o projeto de mapeamento do Planalto e uma coisa acabou por levar à outra.

Li que está a planear voltar à Grande Esfinge. É verdade?

Sim, na próxima temporada estou a planear voltar à Grande Esfinge. Já o fiz na última temporada, entre fevereiro e abril, com o Dr. Zahi Hawass para acabar coisas que não conseguimos na outra missão. Sabe, tem havido tanta perfuração por baixo da Grande Esfinge, e ao longo dos anos tem havido tanta geofísica por ali, com pessoas a usarem radares e diferentes tipos de métodos para verem o que está debaixo da Grande Esfinge… e a verdade é que o Zahi e eu estamos a ficar um bocadinho velhos (risos) e queremos reunir toda essa informação, sobre o trabalho que se tem feito ali – incluindo o trabalho que o Hawass desenvolveu como ministro das Antiguidades – e juntar todos os indícios e provas sobre a Grande Esfinge.

A construção das pirâmides continua a ser um mistério, não é?

Bem, a construção dependeu acima de tudo da organização de pessoas. Não existe uma resposta simples para isso, é como perguntar como se constrói um automóvel. Construir as pirâmides não foi tão complicado quanto construir um automóvel é, mas ainda assim envolveu a extração da pedra, o seu transporte… Contudo, a chave para a forma como os egípcios construíram as pirâmides está na forma como organizaram as pessoas. É muito interessante porque quando construíram aquelas pirâmides gigantes a tecnologia disponível era escassa, não houve nenhuma invenção específica para o fazerem: já tinham cobre, as ferramentas eram as mesmas de que já dispunham antes. A verdadeira inovação foi organizarem pessoas e recursos.

O que lhe causa maior fascínio no Antigo Egito?

O modo como organizavam a sociedade e a economia. Claro que o aspeto técnico de como construíram as pirâmides também, mas acho mesmo que o mais importante foram as pessoas. Hoje, as pessoas são fascinadas por câmaras ocultas e assim… É como no Feiticeiro de Oz: a Dorothy [personagem principal] e os seus companheiros estão todos interessados num poderoso feiticeiro e é assim que nós somos em relação ao Antigo Egito e às pirâmides. Além disso, acho também que as pessoas se entristecem quando o mistério acaba, mas para mim há sempre mistério. Para mim, o facto de aquelas pessoas terem construído as pirâmides num país que tinha no máximo um milhão de pessoas naquela altura – hoje tem cerca de 95 milhões – é tão intrigante quanto as coisas místicas.

Quão avançada era realmente esta civilização? Há quem acredite, por exemplo, que alguns hieróglifos no templo de Seti I (em Abidos) retratam helicópteros e outras tecnologias modernas…

Isso está errado. Não retratam helicópteros, tal como não retratam lâmpadas. Pode ter-se dado o caso de os egípcios estarem a tentar desenhar alguma coisa e acidentalmente, hoje, parece-se com uma lâmpada, mas não é. Não há provas disso. O que as pessoas não percebem é que não é possível que uma civilização desapareça sem deixar qualquer rasto. Não se pode pegar numa pequena cidade em Portugal ou nos EUA e fazê-la desaparecer, haveria sempre ruínas e vestígios. A minha cidade natal, Minot, por exemplo, provocou mudanças tais na paisagem que seria quase impossível fazer com que a cidade desaparecesse por completo. Se existissem helicópteros num período antigo, isso implicava toda uma infraestrutura: onde estão as fábricas desses helicópteros? Onde está o metal e o vidro? Os helicópteros implicam toda uma civilização cheia de tecnologia e não é possível que essa tecnologia tenha desaparecido sem deixar rasto. Agora, às vezes acontecem coisas estranhas, e fazem-se descobertas inesperadas.

Por exemplo?

Há um sítio chamado Göbekli Tepe, na Turquia, que foi descoberto recentemente, nos anos 90. E foi uma surpresa para os arqueólogos, não esperavam encontrá-lo, remonta a cerca de 9000 a.C.! Tem grandes monumentos em pedra com várias figuras que fazem lembrar alguns objetos que existem hoje, e as pessoas New Age que acreditam nos helicópteros na Antiguidade e na existência de Atlântida estão a olhar para esta descoberta como uma grande coisa. Mas não, nenhuma dessas figuras é um helicóptero nem uma máquina voadora. Tendo em conta a história geológica e arqueológica do nosso planeta, é impossível ter existido uma civilização com helicópteros e ter simplesmente desaparecido.

Existe todo um mar de informação sobre o Antigo Egito. Como é que as pessoas podem saber no que devem confiar?

É um problema porque há muita informação, em livros, na Internet… e há muitos sites com pontos de vista alternativos. O segredo está em ter sentido crítico e em olhar para as provas que existem. O que é interessante é que a maioria da literatura New Age sobre o Antigo Egito, as pirâmides ou Atlântida, se referencia uma à outra. Programas televisivos como Ancient Aliens [Alienígenas, transmitido pelo Canal História] mostram umas pedras na Bolívia ou círculos em plantações, mostram coisas físicas, mas na verdade não vão à fonte e não avaliam criticamente, basicamente referenciam uns fenómenos e outros e andam às voltas. Já na ciência, as descobertas constroem-se umas sobre as outras e evoluem sempre. A pseudociência anda às voltas a referenciar-se a si mesma. Oiço discussões sobre a Atlântida desde o início da minha carreira, mas fizemos algum progresso? As pessoas dispõem-se a acreditar no que querem acreditar. E apesar de esta visão New Age ser mais visível nos EUA, também existe na Europa, onde há por exemplo movimentos alternativos na Áustria.

Quais são as teorias mais estranhas de que tem conhecimento?

Tenho caixas e caixas cheias de teorias que fui recebendo ao longo de mais de 40 anos. Não sei qual é a mais estranha, mas posso dizer-lhe as primeiras que me vêm à cabeça. Uma diz que as pirâmides são o modelo de uma molécula de hidrogénio. Outra, defende que são um modelo do cérebro humano. Outra ainda acredita que são um modelo hidráulico. As pessoas são estranhas (risos).

Publicou no fim do ano passado um novo livro, com Zahi Hawass. Em que consiste a obra?

É um livro grande e pesado e se o comprarem podem usá-lo para manterem as portas abertas, porque é mesmo muito pesado (risos). Não é o livro mais alegre que escrevi, mas reúne informação recolhida ao longo de quatro décadas sobre o Planalto de Gizé e as pirâmides, a par das nossas descobertas.

O que podemos hoje aprender com a civilização Egípcia?

A forma como organizavam as pessoas. Foi num período em que eles não tinham a noção de liberdade nem de democracia ocidental como hoje, obedeciam a um rei, e de certa forma é muito mais fácil construir uma pirâmide gigante quando não se tem escolha e se é obrigado a fazê-lo. Temos de ter cuidado ao olhar para trás para perceber como chegámos aqui em termos de progresso, liberdade, conhecimento, sentido crítico.

Quais são os grandes mistérios em torno do Antigo Egito que ainda subsistem?

Ainda não percebemos como é que levantaram as pedras a uma altitude tão elevada. Tenho a certeza de que usaram rampas de algum tipo, mas ainda não o conseguimos compreender totalmente. Outra coisa é que, apesar de o trabalho forçado existir ao longo de todos os períodos do Antigo Egito, o contexto da construção das pirâmides é verdadeiramente invulgar. Como é que levaram tanta gente a construí-las? Foi através da coerção ou da força? Como é que conseguiram mobilizar o país inteiro para a construção?

A inauguração do novo museu do Egito, o Grande Museu Egípcio, estava agendada para maio. Já abriu?

Ainda não, mas os escritórios da minha organização Ancient Egypt Research Association (AERA) são muito perto do Museu, por isso acompanhamos a evolução quase todos os dias e posso dizer que vai ser um edifício realmente icónico. É enorme e tem vista para as pirâmides, está muito próximo delas, e quando abrir tenho a certeza de que será um evento muito concorrido. Estou entusiasmado com isso de várias formas, em particular com o facto de que vai – já está – a mudar toda a área em redor e tornar o Cairo ainda mais um destino obrigatório.

Já está a planear a reforma?

Não planeio reformar-me antes dos próximos cinco anos.

O que ainda quer fazer antes de deixar o terreno?

Antes disso, quero tentar preservar e abrir a cidade perdida a visitantes, proteger e tornar acessível online o nosso recheado arquivo com registos de mais de 30 anos de escavações e ainda acabar a fase de pesquisa na qual procuramos o palácio e tentamos perceber qual o período mais antigo da cidade perdida.