De um dia para o outro os portugueses passaram a interessar-se por carros usados. Ou em segunda mão, como é normal dizer-se ou escrever-se, mesmo que eles já tenham tido dois, três ou quatro donos. Por todos os jornais, os anúncios proliferavam como uma espécie de praga: “Vendem-se dezenas de carros de 2, 3, 4 e 5 contos impecáveis de mecânica”.
Claro que cada um corria o risco que lhe dava na gana. Cinco contos impecável de mecânica podia muito bem querer dizer uma carcaça mais digna de ferro velho do que de garagem e cuidados extremosos. Enfim, negócio era negócio, bom ou mau. Uma reportagem levada a cabo pelo “Diário de Lisboa” no dia 28 de Agosto de 1971 sobre o fenómeno emergente começava assim: “Stands grandes e pequenos, luxuosos e pobres, stands que são apenas número de telefone ou placa de estacionamento nas ruas da cidade, de que tomamos conhecimento por anúncio de jornal, são outras tantas hipóteses de comprarmos o automóvel que desejamos ou de trocarmos, por outro mais recente, aquele de que estamos fartos”.
A escolha era vasta. Ora, quão vasta? Vastíssima. Havia, pelos vistos, muitos portugueses decididos a verem-se livre das suas traquitanas, mesmo que a palavra traquitana dificilmente fosse aplicável a muitos carros postos neste novo mercado. E se o sujeito tinha dois contos para investir na máquina, não faltavam oportunidades. Ainda por cima com a possibilidade de dar uma entrada de 500 escudos e ficar a pagar o resto durante 30 meses. Cáspite! Se isso não era entusiasmante…
“Num destes stands encontrámos um Citroën DS 19 que já fez a delícia de muitos proprietários”, prosseguia a tal reportagem que referi. Ora, hossanas! A um Boca de Sapo ninguém vira as costas, nem neste ano da graça de 2018 no qual essas obras de arte da criatividade francesa são verdadeiras relíquias. Preço acessível em 1971: quatro contos e quinhentos! Já um FIAT 600 era vendido por dois contos: “Este é, talvez, o carro mais em conta vendido em toda a cidade. Com grande volume de vendas e mais de três dezenas de automóveis para transacionar, muitos deles têm de ficar alinhados junto ao passeio da rua fronteira, por não caberem nas acanhadas instalações do stand”.
Descoberta Os portugueses descobriam que optar por um usado lhes permitia, verdadeiramente, comprar o carro dos seus sonhos. Mesmo que os veios da ferrugem na chapa entrassem pelo olhos dentro de quem lhe deitava uma espreitadela superficial. “Um leve toque no volante denuncia folgas na direcção e os pneus, apesar de limpos e escurecidos com uma leve camada de um produto oleoso denunciam com facilidade os muitos quilómetros percorridos e ameaçam não resistir à primeira fiscalização eficiente”. Ah, pois. De que estavam à espera? Falamos de usados e a palavra diz tudo. Travões, suspensões e o diabo a quatro eram incógnitas muito misteriosas. As condições de segurança das pechinchas eram certamente poucas. Mas havia também negócios mais chorudos, a rondar os vinte ou trinta contos. Demasiado para a carteira de um operário, por muito sonhador que fosse.
“Apenas dois ou três stands em Lisboa se dedicam à venda de carros em segunda mão cujos preços estão acima da centena de contos”. Cem contos por um carro usado??? Eis algo que não dá para qualquer carteira. E, já agora, para qualquer consciência. Mas que os havia, havia…
“No seu conjunto ou isoladamente significam luxo e desporto em carros que já andaram por outras mãos. O ambiente é elegante, chegando mesmo a ser requintado. Um deles tem a exposição de automóveis apoiada por um excelente bar, onde enquanto de discutem os pormenores da transferência se pode tomar um drink sentado em amplas almofadas e tendo por fundo sonoro uma melodia suave”.
Valia tudo para encantar os clientes mais endinheirados. Clientela cuja maior percentagem se situava no campo dos trabalhadores liberais, proprietários e industriais. Só esses poderiam sair do stand ao volante de um Lamborghini Miura, por exemplo. 550 contos: metade paga à cabeça, a outra metade dividida em 24 prestações mensais. Muito dinheiro para um tempo em que ele não abundava em Portugal.
No meio de tanta transação, ouve um modelo que fez furor: outro Lamborghini. O anúncio dava conta da categoria do bicho: “Um fabuloso Mangusta de cor azul – único em Portugal!!!”
Merecia bem os pontos de exclamação.
Preço? seiscentos e sessenta contos, assim mesmo, por extenso.
“Muita pasta!”, exclamaria algum português cujas finanças fariam deste negócio um escândalo pátrio. Mas o facto era indesmentível, como costuma ser a realidade dos factos: tinha comprador, pronto a sair com ele para as ruas de Lisboa, exibindo o glamour do design italiano, talvez puxando a fumaça de um cigarro pela janela da qual espreitava o cotovelo de manga de camisa arregaçada.
O felizardo? Um oficial do exército. Quem diria que ganhava tão bem? Em troca do Mangusta, entregou um Alfa Romeo e um Lótus. Quem diria que tinha uma garagem tão bem recheada? O restante, pagou a pronto. O exército não brincava às prestações…