Praga, 50 anos depois. O paradoxo de comemorar uma história comunista

Praga, 50 anos depois. O paradoxo de comemorar uma história comunista


Apenas metade dos checos e pouco mais de um terço dos eslovacos consideram positiva a Primavera de Praga 


O presidente da República Checa, Milos Zeman, decidiu que hoje não pronunciará qualquer discurso a propósito dos 50 anos da invasão da Checoslováquia por tropas do Pacto de Varsóvia, que puseram fim à abertura política que o primeiro-ministro Alexandre Dubcek iniciara em janeiro. A Primavera de Praga acabou a 21 de agosto de 1968 mas, meio século depois, o chefe de Estado preferiu nada dizer sobre o assunto. A decisão de Zeman valeu muitas críticas políticas, jornalísticas e de outros checos que enviaram pedidos à televisão pública para que difunda em direto o discurso de hoje à noite do presidente eslovaco, Andrej Kiska.

Embora à primeira vista possa parecer estranho que um político eleito não aproveite uma ocasião histórica para falar na televisão, a verdade é que a Primavera de Praga e o papel de Dubcek não são hoje uma memória assim tão grata nos dois países herdeiros da antiga Checoslováquia. Segundo uma sondagem da Academia das Ciências Checa e Eslovaca, publicada a 12 de agosto, apenas metade dos checos e um pouco mais de um terço dos eslovacos consideram a Primavera de Praga positiva.

A figura de Dubcek é vista com melhores olhos. Mesmo assim, está longe de ser generalizada a perspetiva: são 60% dos eslovacos, mas nem metade dos checos (47%).

O dilema político de Zeman alarga-se a muitos outros políticos checos e eslovacos. “O Estado deveria comemorar esse momento muito feliz da vida checoslovaca. No entanto, não ousa celebrar uma coisa que foi feita pelos comunistas. Por causa disso, não faz nada”, explica a historiadora Muriel Blaive, do Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários de Praga, citada pelo “Le Monde”.

Mais importante, o aniversário lembra o fim de uma aventura política que começou em janeiro e acabou na madrugada de 21 de agosto, quando dois mil tanques e 200 mil a 400 mil soldados do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia para garantir que a abertura promovida por Dubcek se voltasse a fechar. O primeiro-ministro checoslovaco, para evitar um banho de sangue face à desproporcionalidade de homens e armas, aceitou pôr um ponto final no seu “socialismo de rosto humano” e a primavera acabava em pleno verão – mesmo assim, 72 checos morreram.

Meio século depois, caído o Muro de Berlim, desagregada a União Soviética, o temor a Moscovo ainda reina na República Checa e na Eslováquia. O debate está instalado se a Rússia de Vladimir Putin é hoje uma ameaça estratégica ou se, antes pelo contrário, as relações devem ser aprofundadas, apesar das sanções da União Europeia.

Zeman, por exemplo, é um admirador público do seu homólogo russo e a República Checa esteve entre os Estados-membros da UE que não expulsaram qualquer diplomata russo por causa do envenenamento do ex-espião britânico Sergei Skripal e da sua filha.

“Os acontecimentos de 1968 ainda continuam a desempenhar um papel na forma como pensamos na Rússia. Os russos são sempre muito amigáveis quando descobrem que somos checos, mas é melhor não falar sobre História”, disse ao “Guardian” Dana Kyndrová, curadora da exposição de fotografia sobre os 50 anos da Primavera de Praga, atualmente em exibição no edifício da velha câmara da cidade.

A televisão e a rádio públicas dedicam emissões especiais aos acontecimentos de há meio século, tendo a Rádio Checa preparado uma emissão de 13 horas que culminará com uma cerimónia à entrada do principal edifício da estação, com discursos do primeiro-ministro, Andrej Babis, e dos presidentes das duas câmaras do parlamento checo. Na ocasião será descerrada uma placa em homenagem a vítimas da invasão antes desconhecidas.

 

Pavol chora por ninguém querer o arquivo do pai

 

Pavol Dubcek é médico em Bratislava, na atual Eslováquia. Aos 70 anos, as lágrimas ainda lhe vêm aos olhos quando pensa que nenhuma fundação, nenhum museu se mostrou interessado no arquivo do seu pai, Alexandre Dubcek. É uma injustiça, conta ao enviado especial do “Le Monde”, Blaise Gauquelin. Pavol teme que a morte lhe chegue antes de alguém mostrar interesse por esse pedaço de História que deveria ser guardado, estudado.

Meio século depois da Primavera de Praga, no entanto, não parece haver interessados em todo esse material: fotos, correspondência, relatos de encontros com Tito na Jugoslávia, com sociais-democratas no Ocidente – tesouros que o médico vai retirando dos armários onde os mantém guardados, à espera.

“Sem o meu pai não teria havido a queda do Muro, em 1989. É graças à pressão do movimento checoslovaco que a mão de ferro se foi progressivamente retirando de numerosos povos da Europa”, sublinha o médico, consciente de que, sem esses documentos, o pai poderá passar à História como alguém que acabou por trair o sonho que alimentou durante meses. O que seria uma injustiça, tendo em conta o papel que o primeiro secretário do Partido Comunista Checoslovaco desempenhou na história soviética na Europa, a sua vontade de reformar o socialismo por dentro, dando-lhe “um rosto humano”.

Mas a História parece não lhe perdoar que tivesse aberto o caminho para uma reforma que depois acabou por não defender, encolhendo-se à vista dos tanques soviéticos nas ruas de Praga.

Pavol Dubcek tem uma outra perspetiva, mais positiva: “Os soviéticos queriam liquidar toda a  intelligentsia. Washington não fez nada. O meu pai não queria ser um desses dirigentes que conduziram o seu povo à tragédia.