Em agosto de 2009, em plena silly season, uma manchete do “Público” veio trazer uma agitação à política nacional pouco comum para a época do ano. “Presidência da República teme estar a ser vigiada”, avançava o jornal.
Os suspeitos da ‘espionagem’ eram os socialistas, liderados por José Sócrates, que na altura estavam no governo. Os dirigentes do PS tinham tornado pública a participação de assessores de Cavaco Silva na elaboração do programa do PSD, facto que era usado como argumento justificativo da desconfiança.
O “Diário de Notícias” informou, um mês depois da bomba rebentar, que afinal a notícia tinha sido ‘encomendada’ ao “Público” por Fernando Lima, o assessor de Cavaco Silva, na altura Presidente da República.
O mesmo jornal escreveu que foi “num café discreto da Avenida de Roma”, em Lisboa, que o homem de confiança de Cavaco entregou a Luciano Alvarez, jornalista do “Público”, um dossier sobre Rui Paulo de Figueiredo, adjunto jurídico de José Sócrates, cujo comportamento levantara suspeitas aquando da visita de Cavaco Silva à Madeira. Fernando Lima estava convencido que este adjunto de Sócrates tinha integrado a comitiva para “observar, o mais dentro possível, os passos da visita do Presidente e o modo de funcionamento interno do staff presidencial”.
O “Diário de Notícias” soube do encontro entre Lima e Alvarez ao ter acesso a um email enviado pelo jornalista do “Público” ao correspondente na Madeira do jornal, Tolentino de Nóbrega. Luciano Alvarez sugeria que seria bom que a história viesse da Madeira, para que as suspeitas da denúncia não recaíssem sobre a Presidência. “O Lima sugere e eu acho bem duas perguntas para o início do trabalho (até porque a eles também interessa que isto comece na Madeira para não parecer que foi Belém que passou esta informação, mas sim alguém ligado ao Jardim)”, podia ler-se.
Nesse email datado de 23 de abril de 2008, Alvarez referia-se ao assunto – que preferia tratar via net porque “nem os homens do Presidente da República arriscam a falar por telefone” – como uma possível bomba atómica, caso a história for confirmada. Admitindo que tudo não poderia não passar de uma “paranoia dos do PR e do Lima”, o jornalista fez questão de frisar que “não deixa de ser grave que o PR pense isto e que ande a passar informação ao ‘Público’, manifestando grande vontade da história vir a público”.
Tolentino de Nóbrega acabou por responder ao email de Alvarez a 5 de maio de 2008 e deitou por terra as desconfianças de Belém. “Conforme disse em contacto telefónico, feito na semana passada, julgo que tudo isto não passa, como admitiste, de paranoia do PR & Lima”. Na mesma mensagem, o correspondente do “Público” no Funchal descrevia os passos que deu para tentar confirmar a que propósito e como é que Rui Paulo de Figueiredo esteve presente nas cerimónias da visita do Presidente da República à Madeira.
Quase um ano e meio depois, o jornal publicou a manchete a dar conta das alegadas escutas por parte do gabinete de primeiro-ministro a Belém, porque “outras fontes revelaram novos dados de uma história que ainda não está toda contada”, disse na altura José Manuel Fernandes, então diretor do “Público”.
Aquele que ficou conhecido como o “caso das escutas” – e que foi considerado por José Sócrates como “disparates de verão” – ocupou a agenda política durante toda a campanha eleitoral para as legislativas, que aconteceram no fim de setembro de 2009, e gerou uma guerra entre Sócrates e Cavaco Silva.
Cavaco reage
Questionado por jornalistas sobre a polémica, dias depois do “Público” lançar a notícia, Cavaco Silva alertou para que “não se deixem atrair para lutas político-partidárias”. “O Presidente da República é isento, independente em relação a todos os partidos e principalmente em tempos eleitorais deve deixar todo o espaço aos partidos. Ficarei totalmente em silêncio”, acrescentou.
”Mas a história partiu de Belém?”, contestou uma jornalista. Cavaco reagiu: «A senhora não é ingénua, eu também não», numa alusão ao aproveitamento político-partidário do tema.
Depois disso, o Presidente da República manteve-se em silêncio até ao fim das eleições. No dia a seguir ao sufrágio, fez uma comunicação ao país, às oito da noite, sem direito a perguntas, onde confirmou a desconfiança de que podia estar a ser vigiado. “Será possível alguém do exterior entrar no meu computador e conhecer os meus emails? Estará a informação confidencial contida nos computadores da presidência suficientemente protegida?”, questionava o chefe de Estado.
Já os socialistas afirmavam que o caso das escutas foi uma “invenção”. “Nunca passou de uma invenção e constituiu uma grave manipulação da verdade com o objetivo único de prejudicar o PS e o governo”, afirmou o então ministro Pedro Silva Pereira na mesma noite em que o Presidente da República falou ao país.
Fernando Lima afastado
Cavaco Silva acabou por afastar Fernando Lima, o assessor que o acompanhava há mais de 20 anos, porque «ninguém está autorizado a falar em nome do Presidente da República, a não ser os seus chefes da Casa Civil e Militar”. “Foi por isso e só por isso que procedi a alterações na minha Casa Civil», explicou Cavaco mais tarde.
Em 2016, após sete anos de silêncio — à exceção de um artigo publicado no semanário “Expresso” em 2010 -, Fernando Lima decidiu “esclarecer o chamado caso das escutas”. “Agora é tempo de usar o direito à minha defesa”, referiu, em comunicado de promoção do seu livro “Na Sombra da Presidência”. Aí, o antigo assessor de Cavaco considera que o caso das escutas se tratou de um “um processo político que pretendia, naquela altura, desqualificar a Presidência da República e o seu titular”.
“Mesmo depois de sair da assessoria para a comunicação social, continuei a ser alvo de quem me seguia. Situações estranhas foram-me acontecendo sem que encontrasse uma razão plausível. Só pararam quando o governo de José Sócrates foi substituído. Deixaram inclusivamente de se ouvir queixas daqueles que também suspeitavam estar a ser vigiados», afirmou Fernando Lima que, após a polémica, passou a ser assessor do chefe da Casa Civil, Nunes Liberato.