O cosmopolitismo racista


Com tanto turismo, com tanto mundo ao alcance dos dedos pela internet e que nos entra em casa diariamente pela televisão, já era tempo de termos perdido o medo do outro, mas ele anda por aí


Vivemos num tempo em que o ciclo de notícias é acelerado, já não há empregos para a vida e em que verdades aparentemente consensuais voltam a ser questionadas. Deixa marcas ser adulto numa existência volúvel onde a novidade de um conceito dura apenas o tempo de ser copiado e melhorado, onde sabemos que já nem uma licenciatura garante um emprego com salário decente.

Por outro lado, vivemos num tempo em que o mundo está ao alcance dos nossos olhos e dedos todos os dias, numa época em que as viagens de avião ainda são suficientemente baratas para fazer com que meio mundo passe o tempo a visitar o outro meio, onde o Google View nos mostra até as ruas e as casas de vilas e aldeias de que nunca tínhamos ouvido falar. Onde os reality shows levam pessoas comuns (ou mesmo rascas) para ilhas paradisíacas na descoberta do amor e da natureza.

Depois de séculos de evolução, de desenvolvimento dos direitos humanos, de aprofundamento do direito internacional (mesmo que o mesmo seja evocado normalmente só quando dá jeito aos Estados e desdenhado quando põe em causa um qualquer direito soberano), da multiplicação de agências das Nações Unidas e de organizações não governamentais; mesmo com tudo isto alcançado, ao mínimo problema, à primeira crise, a maioria de nós entrega-se nos braços do primeiro demagogo populista que vocifera contra o outro, normalmente o imigrante indocumentado que passou as passas do Algarve, as tâmaras da Líbia e outros frutos amargos do caminho para aqui chegar.
À medida que se tornava mais cosmopolita, que se abria às experiências culturais, que viajava em hordas para o Vietname ou para a Tailândia, que via os programas culinários e experimentava receitas de todo o globo, que espreitava o Instagram dos famosos a banharem-se em águas exóticas (ou as notícias da “Flash” ou das revistas cor de rosa que espreitam os Instagram dos famosos a banharem-se em águas exóticas), a maioria continua a encarar o mundo entre eles e nós e a tomar partido por “nós” sempre que alguém grita “foram eles” .

Este mundo ocidental tornou-se cosmopolita e racista ao mesmo tempo, daí que não seja de estranhar a subida ao poder de Donald Trump, o facto de a Hungria ter regressado aos seus tempos fascistas com Viktor Orbán ou de a Polónia estar a transformar-se num Estado ultranacionalista, religiosamente puritano e perigosamente antidemocrático. De a Itália ter uma coligação formada por um partido antissistema e outro vigorosamente racista, xenófobo e antieuropeísta.

O mundo ocidental está transformado num post da Maria Vieira, aparentemente ligeiro, aqui e ali com algum humor, mas de ódios entranhados sempre prontos a fazer estalar a pintura da boa educação.

As redes sociais deixam expostas as entranhas do mundo, como um golpe bem aplicado no abdómen num ritual de seppuku. E as nossas entranhas são feias e pestilentas. A coberto da suposta anonimidade de escrever num teclado de computador no remanso de sua casa, o ser humano mostra a sua verdadeira cara, aquela que só o polimento social de séculos ajudou a esconder, tal como a maquilhagem tapa borbulhas e marcas deixadas pelo acne. Nesse mundo anónimo o homem é pustulento, pulha da sua rua, bully da sua escola.

Anda o mundo a tornar-se mais pequeno, por transportes reais ou virtuais, e basta um minuto no escurinho de um quarto para alguém escrever as maiores barbaridades, desde argumentos infundados até insultos racistas, passando pelo incitamento ao ódio e à violência.

“Estes discursos bacocos e inúteis, porque como já vimos esta gente mente que se farta, querem à viva força obrigar-nos a aceitar os estrangeiros, dar o que não se tem, piorar a situação de todos, para satisfazer meia dúzia de palhaços que se acham ‘humanistas’, ou lá o raio que isso quer dizer na boca deles!”, afirmava recentemente na caixa de comentários de uma das minhas crónicas alguém denominado Lusitano – que, imaginando eu que não seja um cavalo lusitano, nem um sobrevivente dos povos ibéricos pré-romanos, deverá ser um anónimo nacionalista. É para este Lusitano e tantos outros como ele, que do alto do seu pedestal obscuro nas redes sociais vociferam contra os estrangeiros em geral e os imigrantes em particular, que os partidos de extrema-direita falam diretamente, adotando às claras o seu discurso limado do respeito pelo outro. Um político como Trump é muito bem visto porque diz o que pensa, ou seja, insulta o estranho, o estrangeiro, como eles insultam. Os cães raivosos das caixas de comentários mordem e não largam o braço da prosa com que não concordam, preferem considerar tudo o que lhes é alheio como falso; em vez de contrapor argumentos com argumentos, apelidam as ideias dos outros de fake news e insultam em vez de ouvir. É por isso que eu acho que somos como aqueles turistas ingleses que vão para o outro lado do planeta beber cervejas num bar inglês: o cosmopolitismo do mundo é uma ilusão; nós, na verdade, nunca saímos de nós mesmos.


O cosmopolitismo racista


Com tanto turismo, com tanto mundo ao alcance dos dedos pela internet e que nos entra em casa diariamente pela televisão, já era tempo de termos perdido o medo do outro, mas ele anda por aí


Vivemos num tempo em que o ciclo de notícias é acelerado, já não há empregos para a vida e em que verdades aparentemente consensuais voltam a ser questionadas. Deixa marcas ser adulto numa existência volúvel onde a novidade de um conceito dura apenas o tempo de ser copiado e melhorado, onde sabemos que já nem uma licenciatura garante um emprego com salário decente.

Por outro lado, vivemos num tempo em que o mundo está ao alcance dos nossos olhos e dedos todos os dias, numa época em que as viagens de avião ainda são suficientemente baratas para fazer com que meio mundo passe o tempo a visitar o outro meio, onde o Google View nos mostra até as ruas e as casas de vilas e aldeias de que nunca tínhamos ouvido falar. Onde os reality shows levam pessoas comuns (ou mesmo rascas) para ilhas paradisíacas na descoberta do amor e da natureza.

Depois de séculos de evolução, de desenvolvimento dos direitos humanos, de aprofundamento do direito internacional (mesmo que o mesmo seja evocado normalmente só quando dá jeito aos Estados e desdenhado quando põe em causa um qualquer direito soberano), da multiplicação de agências das Nações Unidas e de organizações não governamentais; mesmo com tudo isto alcançado, ao mínimo problema, à primeira crise, a maioria de nós entrega-se nos braços do primeiro demagogo populista que vocifera contra o outro, normalmente o imigrante indocumentado que passou as passas do Algarve, as tâmaras da Líbia e outros frutos amargos do caminho para aqui chegar.
À medida que se tornava mais cosmopolita, que se abria às experiências culturais, que viajava em hordas para o Vietname ou para a Tailândia, que via os programas culinários e experimentava receitas de todo o globo, que espreitava o Instagram dos famosos a banharem-se em águas exóticas (ou as notícias da “Flash” ou das revistas cor de rosa que espreitam os Instagram dos famosos a banharem-se em águas exóticas), a maioria continua a encarar o mundo entre eles e nós e a tomar partido por “nós” sempre que alguém grita “foram eles” .

Este mundo ocidental tornou-se cosmopolita e racista ao mesmo tempo, daí que não seja de estranhar a subida ao poder de Donald Trump, o facto de a Hungria ter regressado aos seus tempos fascistas com Viktor Orbán ou de a Polónia estar a transformar-se num Estado ultranacionalista, religiosamente puritano e perigosamente antidemocrático. De a Itália ter uma coligação formada por um partido antissistema e outro vigorosamente racista, xenófobo e antieuropeísta.

O mundo ocidental está transformado num post da Maria Vieira, aparentemente ligeiro, aqui e ali com algum humor, mas de ódios entranhados sempre prontos a fazer estalar a pintura da boa educação.

As redes sociais deixam expostas as entranhas do mundo, como um golpe bem aplicado no abdómen num ritual de seppuku. E as nossas entranhas são feias e pestilentas. A coberto da suposta anonimidade de escrever num teclado de computador no remanso de sua casa, o ser humano mostra a sua verdadeira cara, aquela que só o polimento social de séculos ajudou a esconder, tal como a maquilhagem tapa borbulhas e marcas deixadas pelo acne. Nesse mundo anónimo o homem é pustulento, pulha da sua rua, bully da sua escola.

Anda o mundo a tornar-se mais pequeno, por transportes reais ou virtuais, e basta um minuto no escurinho de um quarto para alguém escrever as maiores barbaridades, desde argumentos infundados até insultos racistas, passando pelo incitamento ao ódio e à violência.

“Estes discursos bacocos e inúteis, porque como já vimos esta gente mente que se farta, querem à viva força obrigar-nos a aceitar os estrangeiros, dar o que não se tem, piorar a situação de todos, para satisfazer meia dúzia de palhaços que se acham ‘humanistas’, ou lá o raio que isso quer dizer na boca deles!”, afirmava recentemente na caixa de comentários de uma das minhas crónicas alguém denominado Lusitano – que, imaginando eu que não seja um cavalo lusitano, nem um sobrevivente dos povos ibéricos pré-romanos, deverá ser um anónimo nacionalista. É para este Lusitano e tantos outros como ele, que do alto do seu pedestal obscuro nas redes sociais vociferam contra os estrangeiros em geral e os imigrantes em particular, que os partidos de extrema-direita falam diretamente, adotando às claras o seu discurso limado do respeito pelo outro. Um político como Trump é muito bem visto porque diz o que pensa, ou seja, insulta o estranho, o estrangeiro, como eles insultam. Os cães raivosos das caixas de comentários mordem e não largam o braço da prosa com que não concordam, preferem considerar tudo o que lhes é alheio como falso; em vez de contrapor argumentos com argumentos, apelidam as ideias dos outros de fake news e insultam em vez de ouvir. É por isso que eu acho que somos como aqueles turistas ingleses que vão para o outro lado do planeta beber cervejas num bar inglês: o cosmopolitismo do mundo é uma ilusão; nós, na verdade, nunca saímos de nós mesmos.