Faz mais de um mês da morte de Afonso Cautela. Uma presença forte, que se fez notar ao longo de décadas no tíbio panorama do nosso jornalismo. Com aquele hábito de quem “escava lentamente o dia/ até ser tudo ou nada”, estaria atento aos pequenos rumores da madrugada quando desapareceu, no passado dia 29 de junho. Tinha 85 anos, e parece que saiu “discretamente”, talvez porque não mandava o relatório das atividades com pinças, não se queixou dos males menores que tanto entretêm, no seu ponto final não precisou nem de uma doença dessas prolongadas, como quem vai empurrado, e deixou mesmo claro: “Não preciso de escolta.” Querem mais? Pois ainda disse: “Não preciso de nada,/ estou em ordem,/ despeçam-se de mim à bofetada/ e passem muito bem.”
Depois das indicações que Mário de Sá–Carneiro deixou para lhe comporem um “Fim” à sua altura – “Quando eu morrer batam em latas (…) Chamem palhaços e acrobatas!” -, há muito não se via, nesta língua, tão irrepreensível saída pelos fundos (seja em versos ou em linha reta), nem tão clínica clareza de que a eternidade já não tem forças para alombar com todas essas solenidades dos que até na morte são vaidosos. Felizmente, há exceções. Esta pede-nos: “não se esqueçam de pôr o luto” e, no mesmo passo, espera que não falte nos sapatos a “graixa”. É uma exigência irmã da do outro, que queria por força que o corpo, no último passeio por esta Terra, fosse sobre um burro.
Figura a vários títulos marcante, este jornalista de causas, pioneiro do ecologismo em Portugal na década de 70, pautou a sua intervenção por um forte sentido crítico, e a sua obra poética, depois de duas edições de autor – “Espaço Mortal” (1960) e “O Nariz” (1961) -, susteve um silêncio quase total ao longo de meio século, até à publicação, em 2011, de “Campa rasa e outros poemas”. E isto persistindo naquele ofício, como canção clandestina, um assobio que um homem leva ermo em si, como um irresolúvel enigma.
Em 1961, com 28 anos, ter-se-á desinteressado da publicação do que lhe ia ficando dos “diálogos com o silêncio”, e quanto aos livros que marcaram a sua estreia, caracterizou-os como diários. De resto, num poema desse ano, que permaneceu inédito até 2017, quando foi integrado no primeiro volume (os dispersos e inéditos) de “Lama e Alvorada – poesia reunida 1953-2015”, vinca: “Aos meus diários nunca chamei poemas”. Daqui pode inferir-se, como António Cândido Franco fez no artigo saído no 5.o número (abril de 2018) da revista “Flauta de Luz” – “A ‘Arte Bruta’ de Afonso Cautela” -, que pelas urgências do autor não passava a vontade “de fazer prova de talento, submeter-se ao crivo da crítica, ganhar público e cativar vendas, fazer fila para entrar na história da poesia do seu país”.
Escrevendo “versos como quem escreve páginas íntimas e intransmissíveis”, Cautela provava um desapego onde não pode também deixar de se reconhecer a lucidez de um juízo autocrítico bastante severo, em linha, de resto, com a sua militante ação para contrariar a “ditadura do aleatório” quando tomou para si a função de inculcar nos leitores dos vários jornais por onde passou a importância das questões ambientais, alertando nomeadamente para o problema do desordenamento territorial e aquilo a que chamava o “ecocídio sistemático”. E, assim, foi dos primeiros entre nós a assumir que o ecologismo não era apenas outra causa, mas aquela que marcava o corte com um modelo produtivo que assenta na ilusão do crescimento infinito, para aceitar que a sustentabilidade marca o acesso a “uma fase evoluída da marcha da História”. Por isso, na sua militância não se ficou pelo catastrofismo que, como disse numa entrevista em 2007, “virou moda e ideologia política”. Nesse excelente perfil que José Luiz Fernandes lhe dedicou, Cautela sublinha que “a situação hoje é inversa da dos anos heroicos e pioneiros do movimento ecológico. Ainda se rotula o eco-militante de alarmista, derrotista ou catastrofista, mas, em contrapartida, o discurso dominante, em todos os setores, é apocalíptico e catastrofista”. Lembra, deste modo, a necessidade de “o militante da ideia ecologista, hoje, quando todos só falam em desgraças, vírus e aquecimentos globais, ter de se colocar na primeira linha para contrariar esta ‘onda negra’ que invade os média, multiplicadores de um estado depressivo e desesperado”.
O que acima se disse, e que poderá parecer um parêntesis, é na verdade o aspeto decisivo da sensibilidade previdente e, nesse aspeto, poética de Afonso Cautela. E com esta nota, deste ponto em diante, já não acompanhamos Cândido Franco quando diz secundar “sem grande incómodo” a convicção de José Carlos Costa Marques (responsável pela organização e edição da reunião da poesia de Cautela – cujo segundo volume, com a obra édita, deverá chegar ao prelo entre o final deste ano e o início do próximo) quando diz que esta poesia deveria figurar “entre o que de melhor se escreveu na poesia portuguesa nesse período, em especial na década de 1955-65”.
Se é compreensível o ânimo que leva Costa Marques a tentar de tudo para impedir que se perca uma obra que, certamente, não será negligenciável – e sublinhe-se que foi ele o primeiro responsável pela quebra daquele longo silêncio, em 2011, editando “Campa rasa”, ocupando-se depois da reunião de tudo o que ficou pelo caminho -, não devemos, no entanto, e seja em nome de que pretexto for, abdicar de uma justa avaliação crítica, porque não é engrupindo os leitores que se evita um resultado mais do que provável. Diz Cândido Franco que o juízo feito por Costa Marques no prólogo de “Lama e Alvorada” é arriscado, e adianta que a década de 1955-65 foi das mais expressivas do séc. xx português, tendo contado com “as estreias de Herberto Helder, Manuel de Castro, Ernesto Sampaio, António José Forte e Luiza Neto Jorge…” Ora, referindo estes nomes para, logo de seguida, subscrever a afirmação do outro, o tão benevolente crítico e mais empenhado divulgador não faz mais do que resvalar para o leviano panegírico que se tornou o bailinho em que os críticos vão dançando e trocando de par, enquanto passam incólumes e evitam ferir suscetibilidades; sempre vagos ao apontar alvos quando formulam juízos mais severos, e generosos na hora de deporem as coroas de flores, lixando com isso jardins inteiros.
Aliás, Cândido Franco não perde também a oportunidade de causticar “os agentes do atual sistema literário”. Diz ele que a obra poética de Afonso Cautela “com certeza” há de passar-lhes ao lado, e numa nota curiosamente catastrofista ainda adianta: “O que não é um mal, dado o estado em que ele [sistema literário] se encontra, e é além disso aquilo que o autor desejaria para si e para a sua poesia.” Portanto, o crítico não só sabe o que o autor quereria como aproveita para se considerar uma exceção no atual panorama da crítica. Já que estamos a ser francos, deve dizer-se que nada há de mais enxofrante para um autor do que ver-se no lote de vítimas a que um qualquer Zorro literato vem fazer justiça, esquecendo-se depois de ler a obra e esgrimir os argumentos que façam relevar a sua diferença.
Morre-se ainda pior quando nem a satisfação da nossa verdade nos é reconhecida. E não há mal nenhum em ser-se um poeta de segunda linha, particularmente se, como é o caso da poesia portuguesa do último século, é tão notória a importância dos poetas secundários para fazer a riqueza do solo da nossa literatura. Afonso Cautela merece ser lido, sim, mas antes de mais como o homem de uma consciência que não sabia ficar-se pela entoação, feroz cruzado da pena, que se conta entre esses que, com mais ou menos génio, a passam necessariamente pelo sangue. Alguém que se insurgiu contra as catástrofes ecológicas de Sines e do Alqueva, contra o crime de Ferrel e tantos outros que, atentando contra a natureza, na verdade, como ele disse a propósito da eucaliptização, estavam a conduzir à “descolonização de Portugal” – isto muito antes de se falar dessa espécie como uma praga que afunda as suas raízes no nosso solo do mesmo modo que a ganância o faz na nossa sociedade. Afinal, foi o poeta ou o ecologista quem disse “se queres colher desertos, semeia eucaliptos”?
O que importa, por isso, é reconhecer a Afonso Cautela o mérito de ter gostado tanto de poesia que a fez sem alvoroço, de si para si. Cândido Franco fala numa “poesia tosca, não civilizada, despida de presunção literária”, e, nisto, estamos de novo com ele. Sem necessidade, depois, de vir com inférteis especulações sobre a possibilidade de esta vir a ser tida como uma das mais obscuras obras do anti-canône da poesia portuguesa da segunda metade do séc. xx. Mais vale pensar na justeza com que Cautela encarava a poesia como “um erro da natureza”, e como esse erro pode ser uma forma de revolta frente ao catastrofismo que virou moda e ideologia política, tendo proposto, por exemplo, como medida de progresso no jornalismo, “que houvesse paridade entre as boas e más notícias: 50% para cada lado, pelo menos”. Denunciava assim como ficam bem servidas as estruturas de poder por essa forma de criar desalento através de uma representação facciosa do mundo, uma distorção diária da realidade a favor do desespero. Cautela lembrava-nos, deste modo, que o facto de só haver más notícias ou de só as más notícias venderem não pode servir nem de pretexto nem de álibi. E recordava que, na verdade, é a facilidade que tem ditado esta vertigem catastrofista, porque “as más notícias ‘caem’ nas redações e não é preciso trabalhar muito por elas. Já as boas é preciso escavá-las, procurá-las, investigá-las”.
Lama e Alvorada – poesia reunida 1953-2015
Organização e prefácio de José Carlos Costa Marques
Edição: Afrontamento, abril de 2017
Páginas: 568
Preço: €26,00
Um pouco da morte ao lado de um prato de caracóis
Texto de Rui Caeiro
O jornal “Voz de Paço d’Arcos” de junho p.p. traz uma pequena notícia sobre a morte do poeta e jornalista Afonso Cautela. Pela sua imprecisão e desleixo, a notícia merece algum reparo.
Em primeiro lugar, a localização: para o fim do jornal, numa rubrica intitulada “Breves à solta”, ao lado de anúncios a um cabeleireiro, a um restaurante e a uma receita de caracóis cozidos.
De Afonso Cautela, nem fotografia nem desenho.
Recorda-se que o diretor do jornal é pintor generalista, que pinta e desenha desde cavalos a pessoas e que muito do resultado desse trabalho é generosamente espalhado por cada número do jornal, o que neste mesmo se pode observar. Perguntamos: o prato de caracóis merece fotografia, a dona dum salão de chá merece desenho – e o Afonso Cautela não? Não se percebe o critério, ou a falta dele – ou tanta miopia ou desleixo.
Propriamente quanto ao conteúdo da notícia, diz-se que Afonso Cautela “iniciou a carreira jornalística nos jornais ‘O Século’, ‘Capital’ e ‘Público’”, omitindo ou esquecendo que durante vários anos Afonso Cautela já se ocupava, em Ferreira do Alentejo, de uma página de cultura no jornal “A Planície”, onde desenvolvidamente se referiu à literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente neorrealismo e surrealismo.
Também a notícia não faz qualquer referência, e era absolutamente essencial fazê-lo, a que Afonso Cautela foi um pioneiro incontornável em Portugal dos estudos de ecologia.
Mas nada a fazer. Para a “Voz de Paço d’Arcos” era mais importante o tal prato de caracóis…