Da vaca atolada ao chá de burro. Um jantar nordestino

Da vaca atolada ao chá de burro. Um jantar nordestino


Houve moqueca e cocada, cuscuz com manteiga a derrubar fronteiras e suco de maracujá como se faz no nordeste do Brasil


Sejam bem-vindos todos os leitores, em especial os entusiastas de uma boa refeição, a esta que será uma volta ao mundo de sabores pelas mesas do mundo, e feita com guias de luxo: os cozinheiros de outras partes do globo que, há mais ou menos tempo, escolheram Portugal para viver. Nas próximas semanas, todas as sextas-feiras, o i vai comer a casa de uma família estrangeira que, por sua vez, se compromete a presentear-nos com uma refeição típica.
No Ágape, uma rubrica que pediu o nome emprestado a esta palavra grega que significa amor mas também banquete amistoso, vai haver tacho na mesa, conversa sobre raízes, partilha de sabores e copos cheios. 

Do cuscuz à cocada Apresentações feitas, saltemos para o primeiro destino: Piripiri, um município do estado do Brasil no nordeste do país que nos chega pelo fogão de Ana Paula Silva, 41 anos, doméstica, que trocou o seu Nordeste por Portugal em 1999. Os quase 20 anos a morar deste lado do Atlântico não lhe arrancaram o sotaque do Nordeste – nem o hábito de pôr todos os dias na mesa os pratos com que cresceu. “Piripiri é uma zona muito humilde onde as pessoas ainda vivem muito da agricultura”, começa por enquadrar, descrevendo as casas em que o café coado está sempre pronto para as visitas, o leite ainda é distribuído de porta a porta e, para fazer um bolo de nata, não se abre um pacote: recolhe-se, pacientemente, a nata sobre o leite até encher um frasco. No calendário de festividades, a Semana Santa é a mais importante. “Não comemos carne a semana toda. Comemos muito peixe e legumes, como o feijão em baja (vagem), que apanhamos e debulhamos, quiabo, que acho que veio de África, tudo o que a gente planta. E nessa altura também fazemos bastantes bolos. No resto do ano, é o trivial, o simples.”

Para começar, um cuscuz à moda do Nordeste que nos ensinou que este não é, de todo, um prato exclusivamente árabe. “Nós comemos o cuscuz de milho, milho puro mesmo”, explica Ana Paula enquanto põe na mesa o prato retirado diretamente de uma cusquizeira – uma espécie de panelinha específica para cozinhar este grão ao vapor. “Pode comer com carne, com o que quiser, ou só assim, com manteiga.” Fomos pela versão mais simples (a manteiga muda mesmo tudo), que é também consumida ao pequeno–almoço – o café da manhã. “Aqui em casa, durante a semana comemos pão, mas ao fim de semana costumo fazer o cuscuz, às vezes também o beiju”, explica, antes de a conversa seguir pelas memórias gustativas da infância. “Morei até aos dez anos com os meus avós da parte da minha mãe, comíamos bastante peixe porque tinha uma lagoa mesmo ao pé, mas as bases eram o arroz, o feijão e alguma carne, como vaca, galinha e carne de criação [por cá, borrego]. 

E também gostamos de ‘maria isabel’, que é o arroz misturado com a carne; e a carne de sol (uma descrição literal), que também faço aqui. Lá tem uma preparação diferente por causa do clima, que é muito quente [26 graus significam… frio]”.

Para esta refeição, em que o barulho dos talheres foi mitigado pela música sertaneja, Ana escolheu a vaca atolada, que nos conquistou logo pelo nome, mas há outras especialidades, como a galinha ao molho pardo ou o sarapatel – um prato que, com algumas nuances, encontramos também em Goa e Portugal, especialmente no Alentejo. “Pega-se os miúdos do porco, a língua, o fígado, o coração, corta-se miudinho e leva para fazer com tomate, cebola, coentro… quando termina tudo de cozinhar carrega-se bastante no coentro, e também pomos piripíri”. Mas deixemos o porco e passemos para a vaca, que já fumega em cima da mesa. “Estou servindo tudo em tachos porque lá é assim mesmo que a gente faz”, avisa a nossa anfitriã, que teve a amabilidade de pôr na mesa uma toalha em croché, também típica da região, bordada pela avó. A vaca, cortada aos bocados e limpa das maiores gorduras, vai parar à panela para ser atolada num daqueles guisados bem apurados, feitos com tempo, com tomate, cebola, muita mandioca cortada aos pedações e corante [assemelha-se ao colorau mas é feito a partir de urucum e serve apenas para dar cor à comida. “O meu marido [também de Piripiri, atualmente a trabalhar na Alemanha] pede sempre macarrão [massa] com corante”, conta a rir, enquanto nos atiramos à moqueca de peixe. 

O prato, um clássico comum a mais zonas do Brasil, deve ser cozinhado com qualquer peixe branco firme e tem o leite de coco como ingrediente-estrela.

A tapioca – o beiju –, que só recentemente se tornou moda em Portugal, é outro dos produtos mais consumidos no Nordeste e aqui veio com legumes por dentro. “Lá a gente faz mesmo o polvilho. Plantamos a mandioca, depois é triturada e colocada numas bacias muito grandes com água até a goma, o polvilho, ficar pronto”, explica. “Às vezes faço também o beiju com coco (verdadeiro) ralado, fica muito bom” – uma versão que ficámos com curiosidade de testar em casa. 

Na mesa, espaço não podia faltar para a dupla mais conhecida do Brasil: o feijão e o arroz, que os nordestinos carinhosamente batizaram de “baião de dois”. O feijão, preto, é cozinhado num refogado com bastante cebola. Por vezes, a nossa anfitriã junta ao preparado um pouco de linguiça ou bacon, mas em Piripiri isso seria impensável por um motivo muito simples: lá não há enchidos. Já o arroz, outro dos indispensáveis nordestinos e que acompanha tudo, tem tanto de simples como de saboroso. “Não temos aquela coisa de ter arroz carolino, o agulha, chamamos só arroz de primeira ou de segunda.” A acompanhar tudo, uma farofa – farinha de mandioca que ainda não nos saiu da cabeça e que também nunca tínhamos provado. “Fiz a frigideira com cenoura ralada, que também se faz lá, mas juntei um pouco de bacon”, conta.

A comida e a conversa foram empurradas com sumo de maracujá, muito típico da zona, aqui feito com polpa congelada. Já comer maracujá à colher, como fazem os portugueses, “é muito estranho”. “Lá na nossa casa temos maracujá, um pé de manga, acerola, pé de mamão, caju e ciriguela [um sabor que não dá para explicar]”, enumera.
Falta-nos espaço para nos alongarmos – mas o cheiro desta refeição que teve tanto de saborosa como de reconfortante também não cabe no papel. Depois da canjica – uma sobremesa parecida com arroz doce, mas feita com milho branco e coco –, veio para a mesa a cocada, uma espécie de brigadeiro que leva o coco fresco ralado e uma calda leve de açúcar. “Se não tiver tempo para ralar o coco, bota no liquidificador que fica bom também”, sugere. E, nessa altura, a barriga cheia – ou satisfeita, como é mais educado dizer no Brasil – não aplacou a vontade de atacar o doce à mão. 

Só nos resta agradecer a Ana Paula, anfitriã sublime, cozinheira de mão cheia e maravilhosa contadora de tradições. Voltamos daqui a uma semana, com um banquete igualmente amistoso.

O que comemos

Piripiri (Nordeste brasileiro)
•  Cuscuz nordestino (com manteiga)
•  Tapioca (beiju) com legumes
•  Feijão com arroz (baião de dois)
•  Farofa com cenoura e bacon
•  Vaca atolada (carne de vaca guisada com mandioca)
•  Moqueca de peixe
•  Cocada (coco com leite condensado e calda de açúcar)
•  Canjica ou chá de burro (uma sobremesa feita com milho branco)