Pedro Rolo Duarte. Acabar com uma vénia

Pedro Rolo Duarte. Acabar com uma vénia


Ao invés de uma tensa partida de xadrez nos corredores de um hospital, no último ano de vida, Rolo Duarte disse à morte que não lhe levava a mal. Da vida já tinha levado o melhor


A morte pode ser de uma pontualidade britânica, mas ninguém senão o morto lhe reconhecerá essa virtude. Por vezes, tão cedo quanto nos surpreende, logo esse assalto íntimo parece algo que se leu num jornal já amarelecido. Depois do baque inicial, deixa-se a manchete e o lead para se ler os detalhes, como quem procura conhecer-lhe as particularidades, os gostos e assuntos que interessam a uma visita que se espera. A morte que para os outros é inaceitável, uma megera, para o próprio pode ser uma senhora educada que o ajuda a medir a vida em colheres de café.

Pedro Rolo Duarte não encheu a sua de insultos, não cedeu a esse hábito que se tornou outra das vulgaridades tão próprias deste tempo. É coisa que talvez se faça por superstição, como se, por meio de alguns nomes feios, se pudesse espantá-la, provocar-lhe um súbito rubor, uma vergonha que a fizesse mudar de ideias ou, pelo menos, de alvo. É um ofício um tanto desprezado, esse de ceifar uma vida antes de a mais desfiada decadência fazer dela um alívio.

O jornalista que passou por esta casa e que está entre a mão-cheia de profissionais cujo amor desmesurado pelos jornais trouxe um ímpeto nas últimas décadas a esta razão, este espelho capaz de nos refletir e esbofetear, exigir mais daquilo que vamos sendo, tem um momento no seu livro póstumo – “Não Respire” – em que, confessando a sua admiração por Lobo Antunes, destaca uma frase proferida por ele ao receber outro desses prémios que são como paliativos para o Nobel. Dedicando o galardão a um Sr. Barata, com quem toma o café diário, o enfático estilista terá dito que “o cancro é uma puta”. Rolo Duarte discorda. Acha que é tudo menos isso: “Um cancro não é uma puta, nem mesmo quando comove uma audiência à espera do sound bite que a convoca, envolve e dá o tempo perdido por ganho.”

Se é certo que Lobo Antunes havia já superado alguns tumores e estava autorizado a chamar-lhe o que bem entendesse, por esses dias, também Rolo Duarte andava a ver se se safava da “palavra” que o matou. Só que, entretanto, tinha-se já resignado perante a noção de que o cancro é “uma forma de a vida nos dizer que não decidimos nada”. Se já sabemos qual é o desfecho – isso a que para os efeitos do suspense de uma narrativa chamamos spoiler -, neste caso, tratando-se de um livro escrito ao longo do último ano de vida do autor, depois de, a 18 de outubro de 2016, lhe ter sido diagnosticado um tumor no pulmão, no estádio III, o que o vemos fazer é arrumar a casa. Sem nunca abandonar a esperança, revelando até um certo otimismo, o que há de notável neste testemunho é a forma como o jornalista não abandona o homem: vem em seu socorro, ajudando-o a preparar-se para o embate dos meses que se irão seguir. Do que vamos tomando consciência no balanço destes textos soltos e memórias, que se organizam como se a perspetiva da morte lhes servisse de razão estruturante, é que, se “os homens são feitos de amor, tempo, separações, faltas e ausências”, eles são, “sobretudo, feitos de palavras”. Isto diz-nos o escritor e psiquiatra Michel Schneider no livro “Mortes Imaginárias” (ed. Cotovia). 

Aceitando que “o cancro é mais uma chatice que, conforme nos toca, nos acorda para viver ou nos deixa morrer”, Rolo Duarte faz-se valer dos mais de 30 anos a lidar com as palavras para, através de um efeito de apreensão verbal, conseguir deter a desordem e a incerteza que passa a dominar os seus dias. “Não sei quase nada. Fui apanhado repentinamente por tudo o que jamais admiti para o meu bem imaginado e desenhado percurso. E se faltava falhar mais uma previsão, ei–la bem clara à minha frente, num quarto de hospital onde estou acompanhado por um homem de quem só percebo a respiração ofegante (as enfermeiras chamam-lhe príncipe, mas não tenho a certeza de que oiça), vítima de um desses fenómenos que atropelam o cérebro e o coração quase ao mesmo tempo.”

A escrita, sem ter a pretensão de ser literária, surge aqui como um hábil expediente para fazer frente ao “ruído que vem dos corredores, a tosse imparável de uma mulher lá ao fundo, os comprimidos ao adormecer, as rondas de madrugada”. Vemos o jornalista amparar o paciente, que confessa a sua falta de experiência naquele contexto, com “a vulnerabilidade da condição, somada às novidades permanentes de uma estreia, [o que] faz de mim uma espécie de barata tonta pela luz intensa da ameaçadora surpresa”. Naturalmente, há alturas em que sentimos a aflição na própria carne, mas logo a experiência do autor se torna aparente, como se apertasse o freio, criando um efeito de distanciamento: “Um hospital consegue a bipolaridade na sua expressão mais crua; é o lugar que nos salva, enquanto nos previne de que podemos morrer. Convoca a segurança do cuidado com o aviso do perigo. E é esta dualidade que lhe confere poder, solidez, e nos dá uma paz que só no dia em que saímos percebemos que nunca tivemos.”

É nesses momentos, com o seu tom desafetado, simples, direto, que Rolo Duarte prova estar à altura daquilo que Philip Roth, em “A Lição de Anatomia”, disse ser uma das funções da grande literatura: “Um antídoto para o sofrimento através da representação do nosso destino comum.”

Por muito despretensiosas que sejam as suas palavras, elas falam um estranho e compassivo idioma. Tão perto do fim e, ao mesmo tempo, capazes de resgatar a sensação de uma época em que o presente se mostrava vívido, com a plenitude da vida a agitar as nossas emoções de forma extraordinária. E aqui socorro-me de uma passagem de “Pastoral Americana”, quando Roth se pergunta se em alguma outra fase das nossas vidas como na infância nos sentimos tão absortos no seu oceano de detalhes. “O detalhe, a imensidão do detalhe, a força do detalhe – a preciosa infinidade do detalhe cercando-te na tua jovem vida como os sete palmos de terra que assentarão sobre o teu caixão quando estiveres morto.”

Seria injusto passar ao lado dos tantos momentos neste livro que atestam a propensão epicurista de Rolo Duarte, a forma como, mesmo com a morte na sala, espiando os retratos, desenrolando a conversa por mera cortesia, ele nunca se defendeu dela. Camus afirmava que a consciência vale mais do que a sobrevivência e, como lembra Claudio Magris, num dos ensaios reunidos em “Alfabetos”, a grandeza deste autor francês “consiste em ter unido uma ética inflexível a uma inexaurível capacidade de felicidade, de viver a fundo a vida, como um baile popular ou um dia de sol à beira-mar, até na sua tragicidade enfrentada sem rebuço, recusando qualquer moral que reprima a alegria e o desejo”. Sem querer alargar a comparação ao génio literário do Nobel francês, o que não falta a Rolo Duarte são pessoas que, da grata convivência que com ele mantiveram, não teriam dificuldade em ver como o que Magris diz de Camus se aplicava à atitude que o jornalista português tinha na vida: “Camus tem um sagrado, religioso respeito pela existência, o qual o impede de qualquer transcendência, metafísica ou política, que pretenda sacrificá–la a fins superiores.”

“Não Respire” não é uma coisa só, mas a urgência de um homem que admite a hipótese de ter os dias contados, e, ao invés de um ajuste de contas, e mesmo se nos últimos tempos tinha razões de queixa de muita gente a quem tinha dado muito e se esqueceu dele, Rolo Duarte soube arrancar à proximidade da sua morte um tremendo impulso vitalista e celebrar-se e à vida, e àqueles com quem a partilhou: “Sempre que elogiam o meu aspeto ou estranham a boa disposição, repito o relambório: aos 52 anos, orgulho-me de uma vida cheia, bem-sucedida, e há poucas coisas que me faltam cumprir – uma revista, meia dúzia de viagens, projetos de TV em áreas quase impossíveis de concretizar no nosso amarfanhado mercado. Com este quadro, desculpem-me a frieza e alguma estupidez, poderia partir que iria de barriga cheia e com a clara noção de uma vida bem vivida. Dramática é a vida de quem nunca viveu, de quem esperou concretizar sonhos que entretanto foram abruptamente interrompidos.

Não é o caso. Quero muito continuar a viver, e prometo não desiludir se a saúde me deixar ficar por muitos mais anos. Mas não vejo qualquer dramatismo fatalista no que me está a acontecer. Seja um percalço como espero, ou um final de vida, que não espero.

Seria profundamente injusto se não conseguisse olhar para estes 52 anos com a satisfação que me deram, e a avaliação grata a que me obriga toda a injustiça que vejo à minha volta e não consigo aceitar. Se isto não é realismo, não sei o que é. ‘Vivendo e aprendendo a jogar’, canta Elis Regina. É isso.”

O livro estava em revisão quando Pedro morreu. Fizera 53 anos, e o filho, António Maria, 22. A mesma idade que Pedro tinha quando lhe morreu o pai. São essas coincidências furiosas que pontuam as vidas cujo encanto perdura quando a música por fim é silenciada. Ao interrogar-se, uma vez mais, sobre o que teria o seu pai, também ele jornalista, achado do seu percurso, é então que Pedro admite que o ser-lhe negada a possibilidade de acompanhar o percurso do seu filho (“o maior orgulho da minha vida”) é o que mais aperta o nó que a presença da morte lhe deixa na garganta. Esse nó fica com os leitores, e é um ponto final cuja luz se projeta desenhando na sombra um outro sinal: as reticências.

 


 

Não Respire 

Tudo começou cedo demais (e quando dei por isso era tarde)

De Pedro Rolo Duarte

Prefácio de João Gobern 

Edição: Manuscrito Editora, maio de 2018

Páginas: 296

Preço: 16,50€