Júlio Leite é médico e professor há 45 anos. É um dos maiores especialistas portugueses em doenças colorretais e, em agosto, vai reformar-se do Serviço Nacional de Saúde – a lei assim manda, à chegada aos 70 anos. Nasceu em Guimarães, estudou em Coimbra, foi presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia e hoje lidera a Unidade Colorretal do Serviço de Cirurgia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, uma das melhores do país na especialidade. Em entrevista ao i, recorda a turbulência dos anos de faculdade, marcados pela viragem do regime para a liberdade. Fala sobre a crise no Serviço Nacional de Saúde – que, diz, se deve não só aos cortes na saúde, mas também à atitude dos novos médicos – e lamenta que a cirurgia já não seja uma das especialidades mais desejadas. Com a profissão, confessa ter passado a comer menos fígado porque lhe faz impressão. E conta que no final da carreira ainda teve oportunidade de aplicar uma técnica que nunca tinha conseguido.
Diz-se que a medicina é uma daquelas profissões de vocação, para as quais se nasce. Acredita que é assim? Sempre soube que era o que queria fazer?
Há sempre uma pequena influência porventura de alguém que se terá visto, eventualmente de família ou não, de quem se gosta, e que constitui um motivo adicional para quando o jovem decide se quer ir para Medicina. Tive de facto essa pessoa, um mentor, que me vocacionou. Quis ser médico como o meu pai. O meu pai era uma pessoa importante e as pessoas procuravam-no porque tinham problemas. Era uma pessoa importante para as pessoas. Antigamente, isso era mais evidente, o médico de família era mesmo o médico de família. Mas sem dúvida que a medicina exige uma vocação.
O que é preciso para se ser médico?
Não é só tirar boas notas, hoje em dia é que começa a ser mais assim. E, depois, o que se verifica é que há jovens que têm boas notas, mas não têm, de facto, a maneira de ser ideal para tratar doentes. Os médicos que lidam com doentes têm de ter uma capacidade de diálogo muito boa, compreender as pessoas e ter paciência, porque uma pessoa doente precisa de uma ajuda maior. Às vezes, nas urgências, estamos cansados e lidamos com doentes que procedem mal, não só connosco, médicos, mas também com os enfermeiros, e temos de perceber que aquelas pessoas estão doentes. É preciso ter feitio para isso e ser tolerante. É preciso ter a perceção de que estamos a ajudar o outro.
E que mais?
Ser médico é mais do que uma profissão. Se se trata do próprio homem, que é o ser mais complexo, e se se consegue aliviar os problemas, claro que é uma profissão efetivamente diferente. Sem dúvida que há uma percentagem de alunos que vão para Medicina porque têm boas notas e depois têm emprego seguro, há, e isso não é o ideal. Conheço alguns casos desses. E claro que investir só por isso num curso que demora tanto tempo e exige tanto talvez não seja boa ideia… no caso da cirurgia, por exemplo, só ao fim de não sei quantos anos é que os alunos têm alguma autonomia para sentir que são eles próprios que estão a decidir.
No seu caso, enquanto cirurgião geral, quanto tempo é que diria que passou até ser autónomo?
Passei o tempo da Revolução do 25 de Abril, em que nós, devido à própria revolução, às hesitações e contestações, estivemos cerca de seis anos à espera de entrar para a especialidade. Entrámos mais tarde, tanto eu como os meus colegas, porque havia indefinição nos poderes políticos. Se todos não tivessem vaga para entrar para uma especialidade, por exemplo, os estudantes decretavam uma greve aos exames e ninguém dizia que não porque era uma intenção coletiva. Agora, não é por isso que somos melhores ou piores, mas estivemos seis ou sete anos a fazer policlínica e depois é que entrámos. Como resultado, acabei por ter uma formação geral boa. Mas, por exemplo, quando se entra para a especialidade de cirurgia, são seis anos, e passados esses anos não se fica logo um cirurgião autónomo. Para muitas coisas são precisos mais 10 ou 15 anos.
De que forma é que a cirurgia difere entre essa altura e agora?
Antes, quem queria ir para cirurgia geral eram maioritariamente os melhores alunos, era uma especialidade pretendida. Hoje não é tanto assim, porque começou a haver mais vagas e uma generalização. Além disso, é uma especialidade que tem uma boa percentagem de serviços de urgência e na qual a qualidade de vida das pessoas é um bocado pior e, frequentemente, a pessoa pode ter de estar disponível para uma complicação que exista com um doente. Por isso, as pessoas passaram a pretender ir para dermatologia, gastrenterologia, otorrinolaringologia… porque exigem menos.
Os futuros médicos não querem trabalhar?
É uma coisa curiosa. Os próprios médicos já nem optam por ir para um centro de referência. Verifico isso no nosso hospital da Universidade de Coimbra: há médicos que não querem vir para cá porque sabem que vão ter mais trabalho para fazer, muitas mais horas de serviço… Quer dizer, os melhores alunos deviam gostar de estar num centro mais bem equipado, com mais apoios, e verifica-se isto. É preciso combater isto de alguma forma. E qual é? É dar reforços positivos: por um lado, não pôr a qualidade de vida de rastos; e, por outro, compensar economicamente. Além da tarefa de tratar o doente, também é preciso investigar clinicamente e é preciso ainda ensinar outros médicos. São três funções e isso tem de ser compensado, e os governantes não olham para isto. Como resultado, não estão a aparecer nos hospitais universitários as melhores pessoas. De que serve um hospital onde tudo funciona bem se as pessoas que vão para lá não são boas de facto?
Como olha para a crise na saúde?
Há um aspeto que importa referir: é o doente verificar que o tratamento está condicionado a custos e preços. Os doentes percebem isso e ficam desagradados. Ainda estou no ativo em tudo, ainda faço urgências. Vou fazer a minha última urgência agora este domingo [dia 22 de julho], por isso sei que nas urgências há mais trabalho quantitativo e de esforço do que havia há dez anos ou antes. É indiscutível: a carga de doentes que existe é muito mais elevada. Começaram a cortar, para combater custos, ao nível de centros de saúde e de hospitais regionais, que era onde os doentes iam, e hoje, quando os doentes precisam, vão é ao hospital maior, onde ainda por cima têm a possibilidade de fazer todas as análises de um momento para o outro. Conclusão: começam a faltar médicos e as escalas aumentam. Ora, isto não se passa nos outros países, tem de ser controlado. Há uma enorme carga de trabalho. Quanto aos horários, sem dúvida que não podem ser aumentados demasiadamente. E tem havido indiscutivelmente menor contratação de pessoas, vejo isso no meu serviço: há menos duas ou três pessoas e não foram repostas, isto nos últimos quatro anos. Eu percebo que é preciso poupar, mas também não pode ser à custa de uma concentração demasiada na saúde.
Nasceu em Guimarães, mas formou-se em Coimbra, onde acabou por ficar a trabalhar. Porque foi assim?
Vim para cá motivado pelo meu pai, que era do norte e veio estudar aqui. E gostei de estar em Coimbra, gostei da crise académica de 1969, passámos uma fase contestatária e isso enriqueceu os meus conhecimentos sociais, económicos e políticos.
Recorda alguma história dessa época?
Contestámos de facto o regime e fizemos greve em 1969, mas não só aí, mantivemos um protesto ativo até ao 25 de Abril. Embora não fosse nenhum revolucionário, participei e sempre apoiei tudo – nós, os jovens, contestávamos particularmente a questão da guerra colonial – e eu lembro-me de que cheguei a ter dois ou três artigos escritos e cortados pela censura nas revistas culturais aqui de Coimbra, como a “Vértice”, que tinha um marcado pendor político. Um dos artigos era sobre os sistemas de saúde que existiam no mundo e eu defendia que alguns eram melhores. É evidente que isso, para o regime, era visto como uma crítica e então foi censurado.
E entretanto ficou no hospital.
Sim. Antes do 25 de Abril convidaram--me para ficar no hospital. Era assim, os melhores alunos eram convidados para ficarem como assistentes. Depois do 25 de Abril, o convite caiu e eu entrei na especialidade. Como gostava de estudar e investigar, fiz alguns estágios fora e fiz o doutoramento. E depois voltei para o hospital.
Deu recentemente a sua última aula. Como foi?
Na última aula falei de como a qualidade cirúrgica depende de duas coisas muito importantes. Por um lado, a qualidade do que fazemos, mas, por outro, a qualidade do hospital, porque até podemos fazer uma cirurgia muito bem feita, mas se o hospital não tiver todas as especialidades, cuidados intensivos e tudo, nós não conseguimos obter os melhores resultados. Não depende só do cirurgião, depende do sítio onde se está. E nós, aqui no hospital, temos todas as especialidades e não há nada que falte. Portanto, temos obrigação de estar na linha da frente. Mas esta última lição teve alguma curiosidade porque eu só tive grandes responsabilidades de reorganizações do serviço de cirurgia nos últimos dois anos e falei sobre isso e o porquê de, às vezes, termos de mudar os modelos das coisas. Falei sobre conceitos mais gerais.
Vai ter saudades de ensinar?
Alguém diria que ensinar, ensinamos todos os dias…
Que memórias leva da profissão?
Vê-se o agradecimento que as pessoas nos fazem e isso contenta-nos muito. As pessoas percebem que a vida delas está dependente da nossa ação. Imagine o que é dizerem-lhe: “Há 20 anos, o senhor doutor salvou-me a vida.” E isto passa-se várias vezes. Ainda há pouco tempo tive uma doente gravíssima, e que eu não sabia se conseguia salvar, que me pediu que fizesse tudo por tudo porque, disse–me a senhora, eu tinha salvado o genro dela “há não sei quanto tempo”.
O que significa a cirurgia para si?
Há muitas doenças em que a maior parte do tratamento é através da cirurgia. Claro que a maioria das vezes é preciso tratamentos complementares, mas a qualidade da cirurgia é crucial e cura os doentes. E para fazer cirurgia é preciso destreza manual, conseguir transmitir para as mãos o que estamos a pensar, o passo seguinte, e é preciso conhecer todas as eventuais técnicas alternativas. Ainda hoje estou a aprender técnicas. Dois dos tumores aos quais me dedico mais são os do intestino e do reto, que tecnicamente são difíceis de operar porque estão em sítios anatómicos difíceis. Recentemente introduzimos a possibilidade de tirar as lesões sem ser com incisões. Ora, aplicar uma técnica minimamente invasiva a uma coisa que, por via aberta, já é difícil, acrescenta mais dificuldade. Cada cirurgia é um aperfeiçoamento da técnica e é este aspeto que dá o valor a esta profissão, temos sempre motivação.
Nunca lhe fez impressão mexer nos órgãos e no interior do corpo?
[risos] Quando entrei em Medicina, lembro-me de que não me agradavam muito as dissecções anatómicas no cadáver ou nos órgãos. Posso dizer-lhe que deixei de gostar um bocado de fígado quando comecei a ver os fígados. Mas, tirando isso, não, porque nós modificamos o que está mal, como um tumor, por exemplo, e isso é muito motivador e interessante. Mas não é só cortar, é preciso ter cabecinha e ver se está bem ou não.
E hoje, ainda lhe faz impressão comer fígado?
Sim. [risos] E a partir daí passei a comer muito menos fígado.
Que características curiosas atribui à sua profissão?
Damos mais valor a estar saudável, por exemplo. É que vemos tanta desgraça no hospital que às tantas pensamos: “Eu estou bem, tenho de estar contente.” É uma coisa que as pessoas normalmente não pensam, quem não vê doentes não tem essa perceção, e nós temos obrigação de a ter todos os dias.
Fez sempre urgências, mesmo quando deixou de ser obrigado a isso. Há muitos médicos para quem as urgências são o pior da profissão. Mas esse não parece ser o seu caso…
Devo dizer que é verdade, tenho gosto. Por um lado, isso tem compensações económicas, mas também é verdade que um terço das doenças cirúrgicas aparecem na urgência. E a satisfação que me dá resolver alguns casos – e a maioria das vezes estou a ajudar os mais novos – mais complicados, ver qual é o diagnóstico, qual não é, se conseguimos resolver… não me canso com isso!
Depois de 45 anos de trabalho como médico e professor, vai aposentar-se em agosto. A vida são mesmo dois dias, como dizem?
Isso é uma expressão… basta olhar para os doentes que hoje [terça] recebi. Estive, por exemplo, a ver um com 50 e poucos anos que tem um limite de vida muito curto. Agora, a pessoa tem de pensar que tem um limite e claro que, quanto mais idosos somos, o limite mais se estreita, e obviamente que estou um bocado mais pensativo, mas mais porque não me vejo a fazer outra coisa que não seja isto. Só estou um bocadinho preocupado com não ter trabalho que me faça estar concentrado. Mas os meus colegas tentam descansar-me. [risos] Ainda assim, vou continuar no consultório e isso também é útil para fazer essa transição. Já se queria ser novo ou velho… os conhecimentos que tenho não os queria perder. Claro que outras faculdades podem ser perdidas com a idade. Voltava atrás por outros aspetos, mas não queria perder experiência e conhecimentos.
Recorda algum caso mais desafiante na sua carreira?
Recentemente fiz uma operação que andava há vários anos para fazer, mas não aparecia nenhum doente com esse diagnóstico. E apareceu uma pessoa. Tinha o duodeno, a seguir ao estômago, cheio de pólipos. Nesses casos, normalmente consegue-se tirar os pólipos. Raramente há casos em que não se consegue tirar, e são perigosos porque podem degenerar. No caso dessa pessoa, não se conseguiu tirar os pólipos e então tivemos de tirar o duodeno. Ora, para o fazer há uma operação clássica que é tirar o duodeno e o pâncreas tudo junto, mas há descrição de dois grupos internacionais sobre tirar só o duodeno e desconectar do pâncreas, que é algo que não se faz habitualmente mas que se tem vindo a demonstrar que parece que vale a pena. E então fi-lo, com sucesso. Já fazia apresentações em que dizia que era a melhor operação nestes casos e nunca me tinha aparecido nenhum caso, por isso foi muito bom.
E planos para o futuro, tem?
Não tenho nada em concreto. Provavelmente mantenho a atividade privada e planeio ler mais qualquer coisa que não seja só de medicina [risos] -, mas mesmo assim, na medicina ando com as leituras atrasadas porque não tenho tempo.
As doenças colorretais estão a aumentar?
Temos de olhar para as estatísticas, que entre nós não são ainda muito fidedignas. É possível dizermos que a incidência aumenta porque são diagnosticadas mais vezes e, na verdade, a incidência pode não ser de facto maior. Entre nós, no nosso país, as estatísticas dizem que tem aumentado o cancro do cólon, o cancro do reto, etc., mas se falarmos de mortalidade, por exemplo nos EUA – nós não temos estatísticas muito boas nisso -, a mortalidade relativa aos cancros do cólon e do reto está a baixar, porque há melhores tratamentos.
O que pode contribuir para o aparecimento dessas doenças?
Uma parte dessas doenças podem aparecer porque há alterações genéticas que favorecem o aparecimento de células tumorais. Mas há outros fatores que fazem com que essas alterações genéticas apareçam secundariamente e que favoreçam o aparecimento de estirpes malignas. A obesidade é um deles – as pessoas obesas tem mais tendência para desenvolver cancro colorretal. As pessoas que têm uma alimentação mais rica em proteínas, nomeadamente provenientes das carnes, podem ter uma maior tendência, e por isso é que os estudos à escala mundial têm demonstrado que não convém comer carne mais do que uma vez por dia e não exceder os 150 gramas por dia. Deve-se também comer muito poucos enchidos e carnes conservadas. Esse, contudo, é apenas um fator. Os vegetarianos também têm este tipo de cancros.
O que se recomenda para prevenir, então?
Ter uma alimentação do tipo mediterrânico, com muitos legumes e muita fruta, é recomendável, mas não só para estas doenças. A partir dos 50 anos, recomenda-se por exemplo uma colonoscopia todos os anos. Mas ainda há muito que saber e investigar, os novos médicos que não se preocupem que vão ter muito que trabalhar. [risos]
E para além de muito trabalho, o que esperar da medicina nos próximos tempos?
Isso é um pouco difícil. [risos] Pensando na minha área ao nível de tratamentos, os basais não vão alterar-se muito. O que vai acontecer no domínio do tratamento cirúrgico é podermos ter tecnologias cada vez mais avançadas que permitam identificar melhor onde está a lesão, e depois ser possível o próprio tratamento ser feito com pequenas incisões, não abalando o resto do organismo, através de robôs.
Os robôs vão substituir os médicos humanos?
[risos] É difícil dizer. A experiência que temos das conduções autónomas, por exemplo, é que já houve acidentes mortais. O mesmo vale para a cirurgia – se por acaso há uma falha, é um drama. Tem de haver um supercontrolo humano, digo eu. Ainda não há nenhum robô que tenha ultrapassado o homem.