Gastronomia. Antes de Bourdain houve Gold

Gastronomia. Antes de Bourdain houve Gold


Morreu Jonathan Gold, o crítico gastronómico que dizia escrever para que as pessoas tivessem “menos medo dos vizinhos” e que foi o primeiro da sua área a ganhar um Pulitzer


Era uma vez um tempo em que as críticas gastronómicas não estavam mascaradas de publicidade; em que os jornais podiam pagar uma, duas, três refeições até que o crítico desse por terminado o seu trabalho; em que os jornalistas não estavam à rasca para encher páginas e em que os restaurantes não pagavam a agências de comunicação para que os enfiassem no meio das páginas dos jornais, em textos que não passam de elogiosa divulgação a troco de… uma refeição no local. Esse tempo (que ainda subsiste para alguns privilegiados meios de comunicação) fez-se com nomes como o de Jonathan Gold, que em 2007 conseguiu deixar uma marca indelével nas páginas de gastronomia do mundo: foi a primeira pessoa a receber um prémio Pulitzer pelo seu trabalho como crítico gastronómico. Em 2011 voltou a estar nomeado para o prémio. No início deste mês foi-lhe diagnosticado um cancro no pâncreas que em três semanas lhe ceifou a vida – morreu este fim de semana, poucos dias antes de completar 58 anos.

Atualmente a escrever para o “Los Angeles Times” (antes foi um dos críticos de serviço do “LA Weekly” e de uma revista da especialidade, a “Gourmet”), Gold mantinha também um programa de rádio. Trabalhava para o “LA Weekly” quando foi distinguido com o Pulitzer que o tornou mundialmente (re)conhecido.

As tascas Era conhecido por dar palco a restaurantes étnicos e ao equivalente norte-americano das nossas tascas – isto numa altura em que os mesmos eram ostracizados nas páginas de crítica. “Antes de Tony Bourdain, da reality TV, de ‘Parts Unknown’ e de as pessoas levarem a comida étnica a sério, foi Jonathan a percebê-lo, completamente”, considerou ao “NY Times” Ruth Reichl, escritora e editora de Gold no “LA Times” e na “Gourmet”. “O Jonathan percebia que a comida podia ser essencial no processo de unir comunidades, que facilitava a nossa familiarização com o outro”, disse Ruth.

Gold dizia, no entanto, odiar a palavra “étnico”, preferindo a expressão “cozinha tradicional”.

O Mosaico de LA Los Angeles foi, sem dúvida, a folha em branco – e, afinal, tão multicolor – de Gold, que aqui nasceu a 28 de julho de 1960. Teve uma educação judaica e, no seu primeiro ano na Universidade da Califórnia em LA (onde estudou Música e Arte), chegou a trabalhar brevemente no restaurante da mãe de Steven Spielberg, Leah Adler.

Começou a escrever sobre comida há quase 40 anos. “No início dos anos 80 não havia mais ninguém. Ele foi um pioneiro e mudou completamente a forma como se escreve sobre comida”, lembrava Ruth Reichl. Embora se tenha notabilizado como crítico gastronómico, também era um melómano e escreveu críticas musicais para o “LA Weekly”, tendo chegado a editor de música do jornal.

Tornou-se famoso pela sua coluna, “Counter Intelligence”, que começou a escrever em 1986 e que levou consigo para as várias publicações onde foi trabalhando. Em 2000 edita o primeiro livro: “Counter Intelligence – Where to Eat In The Real Los Angeles”, onde compilou as mais de 200 colunas de opinião que tinha escrito até à data.

Em 2015 foi protagonista de um documentário, “City of Gold”, realizado por Laura Gabbert, em que o crítico, conhecido por usar quase sempre suspensórios, conta a sua história e nos leva até à(s) sua(s) mesa(s) na Cidade dos Anjos. “Faço todas as coisas que se costumam fazer: reservo com nomes diferentes, tenho até uma série de telefones descartáveis para fazer as reservas”, contava no documentário, em que explicou que não tirava notas. “Raramente tiro notas num restaurante, estou mais envolvido em observar a música da refeição. Quer dizer, tu podes tirar notas também quando estás a fazer sexo, mas irias perder alguma coisa.”

Num quadro mais amplo, dizia que se sentia feliz por estar a escrever um retrato da sua Los Angeles. “[Gosto] da ideia de celebrar o glorioso mosaico da cidade.” E se fez algumas baixas no seu caminho, as suas críticas também abriram muitas portas. “Ter alguém a escrever ‘venha provar esta comida’ fez-me abraçar a minha cultura, fez-me pensar que as pessoas se importavam”, contava uma das cozinheiras ouvidas no documentário.

“Ele pode não ter comido tudo em Los Angeles, mas ninguém chegou mais perto que ele”, escrevia o “New York Times” este domingo. Tanto que as muitas reações ao seu desaparecimento se referem a Gold como um timoneiro, uma espécie de mapa vivo de Los Angeles, agora desaparecido. “Não consigo imaginar a cidade sem ele. Parece errado. Sinto-me como se não tivéssemos o nosso guia, a nossa alma”, lamentava a realizadora de “City of Gold” ao “Guardian”.

Para além do Pulitzer, Gold foi distinguido com vários prémios jornalísticos pela James Beard Foundation – reconhecimento conquistado pela força da pena de um homem que, certa vez, quando questionado sobre qual a motivação por detrás do trabalho de um crítico gastronómico, respondeu que escrevia não só pela magia intrínseca da refeição, mas também “para tentar que as pessoas tivessem menos medo dos vizinhos”.