Parece que uma qualquer autoridade obscura decidiu poupar aos alunos do ensino secundário a leitura do livro “Os Maias”, de Eça de Queiroz. Fazem mal porque, se tivessem oportunidade de o ler, os alunos aprenderiam rapidamente que o Portugal do séc. xxi em nada se distingue do Portugal do séc. xix, que Eça qualificava, com toda a razão, como “uma choldra”.
Assim, o país foi informado pelo Exército e pelo Ministério da Defesa de que o material que tinha sido misteriosamente roubado em Tancos, posteriormente, também foi misteriosamente devolvido. O país suspirou de alívio, mas agora vem a saber-se que, afinal, os ladrões não devolveram tudo, porque ainda ficaram com umas granadas e explosivos, sabe-se lá com que intenções. O Presidente da República declarou-se “preocupado” e exigiu um “esclarecimento cabal”. Já o ministro da Defesa usou o argumento recorrente do “segredo de justiça” para dizer que só o Ministério Público pode dar esclarecimentos sobre o assunto. O Presidente não ficou convencido e comunicou que continuava a exigir esclarecimentos de modo “ainda mais incisivo e preocupado”. Mas, como o Ministério da Defesa não sabe, não quer saber e tem raiva de quem sabe, o Presidente, conformado, já disse que não fazia mais comentários sobre o assunto. Tudo isto faz lembrar 1975, quando foram furtadas mil G3 do depósito de Beirolas, tendo na altura Otelo tranquilizado o país, garantindo que as mesmas estavam “em boas mãos”.
Entretanto, a impunidade no âmbito da nossa classe política cresce a olhos vistos. O parlamento faz aprovar pareceres a garantir que os deputados podem livremente falsificar as suas moradas, que ninguém os irá fiscalizar aquando da atribuição de subsídios de deslocação. E o Tribunal Constitucional acaba de isentar todos os partidos das coimas que lhes foram aplicadas, declarando a sua prescrição. Os deputados e os partidos podem ir, assim, “cantando e rindo” que ninguém se encarrega de assegurar que ao menos cumprem as regras que eles próprios criam – isto porque também têm o hábito de as alterar quando as acham inconvenientes.
Mas o povo começa também a acertar o passo com a classe política. Foi talvez devido a estes elucidativos exemplos que, nas zonas ardidas, vários cidadãos apareceram a falsificar a sua morada fiscal em ordem a poderem obter a reconstrução das suas casas, quando estas eram habitações secundárias ou até já estavam em ruínas aquando dos incêndios. Mas, na verdade, perante estes pareceres do parlamento, quem pode censurá-los por quererem seguir o exemplo dos nossos políticos?
No resto, a geringonça continua a funcionar em pleno. Os partidos da extrema-esquerda fazem reivindicações. O governo diz que não há dinheiro. Eles respondem que assim não aprovam o Orçamento. O Presidente avisa que tem de haver Orçamento. O governo cede a todas as reivindicações, por mais absurdas que sejam. A oposição ou desapareceu, ou apoia o governo. E o Presidente tudo promulga.
No livro “Os Maias”, o director do Banco Nacional, Jacob Cohen, salienta que “a única ocupação dos ministérios era cobrar o imposto e fazer o empréstimo. Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o País ia alegremente e lindamente para a bancarrota.
– Num galopezinho muito seguro e muito a direito – disse o Cohen, sorrindo.
– Ah, sobre isso ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da Fazenda!… A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma…”
De facto, “Os Maias” é leitura perniciosa no país da geringonça.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopçãodas regras do acordo ortográfico de 1990