Aos que fazem o seu dever


Esta semana desapareceu João Semedo, um homem disponível que se destacava nas comissões parlamentares onde durante tantos anos se bateu pelas coisas da saúde e não só


As crianças apanham tudo. Talvez de ouvir falar da Carochinha e do João Ratão nas notícias, era essa a história que a miúda queria ouvir e eu lá tive de ir rever a matéria. Já devia estar à espera do fim trágico, dada a estranha obsessão dos contos infantis por caldeirões fervilhantes – que os miúdos até certa idade acham inofensivos, pelo menos pela forma como a minha tira e mete o lobo dos três porquinhos na sopa –, mas confesso que já não me lembrava em detalhe do triste desfecho do João Ratão, que se deve ter armado em esperto só para ficar com os cozinhados da senhora. Acaba transformado em condimento de guisado, traído pela gula. Já a Carochinha acaba como começa, sozinha. Terá sido só pelo tema das alianças mais à esquerda ou ao centro que António Costa escolheu há dias afastar-se da Carochinha ou teria presente o fim da história? Já Rui Rio respondeu prontamente não ter cara de João Ratão e deu mostras de estar por dentro da narrativa, lembrando até que há outros caldeirões, por exemplo aquele em que caiu Obélix em pequenino, o que lhe deu uma “força brutal”, disse.

Esta semana desapareceu João Semedo, um político elogiado unanimemente pela frontalidade e pelo conhecimento que tinha do terreno onde se erguiam as causas que defendia. Era um homem disponível que se destacava nas comissões parlamentares onde durante tantos anos se bateu pelas coisas da saúde e não só. Firme naquilo em que acreditava, procurava mesmo assim o diálogo, como lhe reconheceram pessoas que até nem concordavam ideologicamente com ele. Num tempo em que a política vai perdendo a confiança e nem sempre se compreende bem o que querem dizer os seus protagonistas, foi um exemplo constante de quem sabia mobilizar e lutar no espaço público, com clareza, por aquilo em que acreditava. E lutou muito tempo sem perder a disponibilidade, respondendo aos emails entre tratamentos fosse para uma declaração ou para desfazer uma dúvida.

Porque nas leituras infantis menos mainstream há muitas coisas que ressoam mesmo aos mais velhos – ou, talvez, sobretudo aos velhos –, transcrevo esta semana uns versos de Matilde Rosa Araújo, que me tem dado alguma alegria descobrir por entre as histórias mais conhecidas do dia-a-dia. Para os que, como João Semedo, fazem o seu dever e, por isso, nunca se calarão.

 

O espantalho fez o seu dever: espantou.

A seara fez o seu dever: alourou.

E os pássaros fizeram o seu dever:

Pousaram no chapéu de palha do espantalho;

Pousaram no ombros do casaco velho do espantalho,

Pousaram nos braços do casaco velho do espantalho,

Pousaram nas mãos de pau do espantalho.

E cantaram: Piu! Piu! Piu!

Quem tem medo

Já fugiu!

Quem tem medo

Já fugiu!

E não se calaram.

Piu! Piu! Piu!

Quem tem medo

Já fugiu!

Matilde Rosa Araújo, “Mistérios”, 1988

 

Jornalista

Escreve à sexta-feira