João Semedo. O guerreiro adorável

João Semedo. O guerreiro adorável


O antigo coordenador do Bloco já não viu o SNS a ser salvo, como defendeu com Arnaut. Morreu ontem pouco depois de fazer 67 anos.


O que tinha João Semedo de extraordinário que tocava qualquer pessoa com quem ele se cruzasse? Marcelo fala de “uma afabilidade acentuada” sendo que a preocupação do Presidente em acentuar como João Semedo era afável mostra que a descrição pode não ser suficiente. “Bondade”, diz ainda Marcelo, usando um adjetivo perfeito embora demodé.

 João Semedo era um feroz combatente das suas ideias, mas se fosse essa a sua única sedução, os adversários políticos nunca se deixariam conquistar. E, no entanto, isso acontecia. Era como se, para João Semedo, em primeiro lugar estivesse sempre a ideia de Humanidade ou, numa expressão muito usada pelos católicos, de amor ao próximo. Aliás, pouca gente sabe o que João Semedo revelou numa entrevista ao Observador – que se chegou a batizar aos 12/13 anos contra a vontade do pai, um engenheiro militante do PCP. Se o período católico de Semedo remonta a essa idade e só durou uns meses, a expressão amor ao próximo, usada na mais ampla latitude, marcou a personalidade e os atos políticos de João Semedo. Talvez saísse à mãe que um dia descreveu como “uma pessoa doce, atenta, sensível”. 

Era um guerreiro na defesa das suas posições políticas, só que era um guerreiro adorável. E isso fazia do antigo coordenador do Bloco de Esquerda um espécime único. Fernando Rosas chamou-lhe a “força tranquila da esquerda portuguesa”. O Sindicato Independente dos Médicos, liderado pelo social-democrata Jorge Paulo Roque da Cunha, disse que “O SNS está de luto”. “Médico, lutador pela liberdade e pelo Serviço Nacional de Saúde, batalhou pelas suas crenças até ao fim. Nele tivemos sempre um interlocutor atento para as questões que envolviam políticas de saúde e a intervenção sindical”. Era o mais amado dos bloquistas.

Mas a dor da gente nunca sai no jornal. Escreveu ontem José Manuel Pureza: “As notícias falarão, como têm que falar, do João como um lutador sem esmorecimento pelo Serviço Nacional de Saúde ou pelo direito a morrer com dignidade, como uma referência do trabalho unitário, como um adversário elegante, como um tipo de uma lealdade e de um cuidado incríveis. O que não cabe em nenhuma notícia é a amizade imensa que hoje fica brutalmente interrompida”. 

João Semedo não é fundador do Bloco. Entra um ano depois, por influência do amigo Miguel Portas. Quando os fundadores se afastam depois da derrota nas eleições de 2011, assume, ao lado de Catarina Martins, o cargo de coordenador de Bloco de Esquerda. A liderança bicéfala é uma experiência falhada, coisa que aliás João Semedo assumiu em várias entrevistas. 

Foi um rapaz de Lisboa, do Jardim Constantino, adepto do Benfica – assistia aos jogos com o tio, o realizador Artur Semedo – mas foi morar para o Porto em 1978. O funeral é hoje às 15h30 no cemitério do Prado do Repouso, a seguir ao velório na Cooperativa Árvore. 

João Semedo tinha feito 67 anos a 20 de junho. Há quatro anos, foi diagnosticado com um cancro nas cordas vocais. Iria regressar à atividade política na primeira linha como candidato do Bloco de Esquerda à Câmara do Port. O anúncio tinha sido feito no início de março de 2017. Três meses depois a saúde de João Semedo agravou-se e teve que ser substituído por João Teixeira Lopes. Em abril renunciou ao cargo de deputado municipal. 

Lutou até ao fim por aquilo em que acreditava: com António Arnaut redigiu a nova lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, que o Bloco levou a discussão no parlamento – e que está neste momento na comissão especializada. 

Foi o grande dinamizador do debate sobre a legalização da eutanásia. Quando a lei foi chumbada na Assembleia, a 29 de maio, afirmou, numa declaração escrita à agência Lusa: “Foram poucos os votos que impediram a aprovação da despenalização. É uma questão de tempo, não foi agora será na próxima legislatura. Andou-se muito nestes dois últimos anos, estamos mais próximos de consagrar na sociedade e na lei um direito fundamental: garantir a todos o direito a morrer com dignidade”.