Um guarda prisional aluno do curso de formação cinotécnica, ou seja, para utilização de cães em operações, foi prejudicado nas avaliações depois de ter testemunhado contra um formador que terá deitado droga de um preso pelo lavatório em vez de a apreender. Esta é a tese do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, que acusou o formador – chefe principal de guardas prisionais Licínio Couto – de um crime de abuso de poder.
Corria o ano de 2016 e Rui Mota estava há já alguns meses em formação. Sabia que bastava uma avaliação mensal negativa para ter de abandonar o curso, mas estava a conseguir: a 7 de abril, a 9 de maio e a 6 de junho foi classificado com “desempenho adequado”, o que significa que, em todas as disciplinas, a avaliação global mensal era positiva. E foi nesse quadro que a 26 de junho foi com o Grupo Operacional Cinotécnico do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo à cadeia de Viseu, para buscas às celas e a áreas comuns. A operação, que contava com a ajuda dos cães, tinha como objetivo encontrar e apreender drogas e materiais proibidos.
Mas o que se passou neste dia viria a alterar tudo, segundo os investigadores. Quatro dias após a operação deu entrada uma queixa feita pelo guarda prisional Cláudio José dos Santos, onde se punha em causa a atuação de Licínio Couto, descrevendo-se mesmo alegados comportamentos que poderão ter contornos mais graves do que o crime por que foi acusado neste inquérito.
“Desloquei-me em serviço ao Estabelecimento Prisional de Viseu […] a fim de executar uma busca com os canídeos no interior do Estabelecimento Prisional. No respetivo local [efetuaram-se] as buscas com os canídeos em várias camaratas”, começou por contextualizar Cláudio Santos na queixa, lembrando que estava com o chefe Licínio, outros guardas e os formandos do curso.
Droga destruída pelos guardas Segundo a versão apresentada, em determinada altura, quando Cláudio Santos e outros elementos se encontravam no primeiro piso junto à camarata n.o 6, que foi alvo de busca, apareceu o chefe Licínio Couto, que começou a verificar as três camas–beliche daquela camarata. “Em seguida, o mesmo subiu para a terceira cama, na parte superior, e passado um tempo retirou um pequeno saco/pacote em plástico, com uma substância presumivelmente ilícita no seu interior. Nesse momento, encontrava-se à porta da camarata o guarda Jorge Aires, ao qual o chefe Licínio Couto entregou o referido saco/pacote e disse: ‘Vê se isto é o que eu penso.’”
O que se aconteceu a seguir é que poucos esperavam. “O guarda Jorge Aires recebendo o saco/pacote foi desembrulhando e olhando para o seu interior disse: ‘Claro que é, já vais ver o que vou fazer.’ Após este comentário, o produto encontrado foi deitado no lavatório por Jorge Aires, destruindo-se a prova. “Sem que nada o fizesse prever, deslocou-se ao WC que ficava logo ao lado da camarata e deitou o conteúdo que se encontrava no interior do referido embrulho no lavatório abrindo a torneira da água, fazendo com que este desaparecesse, destruindo a prova, agindo com dolo”, refere a denúncia, entregue ao chefe principal Carlos Fernando Guimarães, chefe do 2.o Esquadrão do GISP/Grupo Operacional Cinotécnico, e que deu origem a um processo de averiguações.
Apesar de avisos, aluno manteve acusações a formador
Segundo o despacho de acusação a que o i teve acesso, a queixa terá irritado o arguido Licínio Couto, que por diversas vezes abordou o aluno Rui Mota, que aceitara ser testemunha, para lhe dizer que “existia um espírito no Grupo Operacional Cinotécnico que devia ser preservado acima de tudo e que, por isso, tudo o que sucedia dentro do grupo devia ficar dentro do grupo, principalmente o que sucedia durante as missões, relembrando-lhe que estava a frequentar o Curso de Formação Cinotécnica para integrar o G.O.C.”.
Mas Rui Mota, quando chamado na qualidade de testemunha, confirmou tudo.
Numa proposta enviada ao chefe do 2.o Esquadrão Carlos Fernando Guimarães, o arguido argumentou que o formando era uma pessoa crítica que estava desconfortável com a eventual colocação em Lisboa e que sempre foi pessoa de se vitimizar e de tentar saber por antecipação os locais onde iam ser feitas operações.
“Tenho a forte convicção que ambos os guardas, agindo em comunhão de interesses, e movidos pelo seu desagrado das minhas decisões, poderão ter aproveitado uma situação operacional de rotina, para provocar a desconfiança quer no Grupo quer nas pessoas visadas, não olhando a meios para atingir os fins.”
Mas o chefe dos guardas prisionais foi ainda mais longe e pediu mesmo o afastamento de Rui Mota e do autor da denúncia: “A continuidade de ambos neste esquadrão cria-me desconforto doloroso, desconfiança total em ambos, não me garantindo qualquer confiança pessoal ou profissional.” Termina dizendo que ambos podem pôr em causa a “seriedade e profissionalismo dos elementos do grupo fragilizando tudo e todos”.
E a informação deu frutos, apesar de se admitir que não havia elementos de prova para instauração de um processo disciplinar aos denunciantes. Resultou na “necessidade de transferência imediata de Cláudio Ribeiro para outra unidade orgânica” e na “séria ponderação de eliminar do curso o guarda prisional Rui Mota”.
MP arrasa atitude de chefe dos guardas prisionais O despacho, datado de 12 de junho, refere que a 2 de agosto, “o arguido Licínio Couto, juntamente com o chefe principal Carlos Fernando Guimarães e o chefe José Monteiro, procederam à avaliação global do desempenho do formando Rui Mota”, classificando-o com “desempenho inadequado”. Dez dias depois, nova avaliação e nova negativa, o que ditou a sua eliminação do curso de formação cinotécnica.
Segundo os investigadores do DIAP do Porto, “quando procedeu a ambas as avaliações, as de 2 e de 12 de agosto de 2016 (que contrariam todas as anteriores avaliações efetuadas ao formando Rui Mota), o arguido Licínio Couto (sabendo que tais avaliações eram antagónicas às anteriores avaliações) tinha perfeito conhecimento que o formando que avaliava, o guarda prisional Rui Mota, era testemunha num processo em que eram imputados ao arguido, pelo denunciante guarda prisional Cláudio Ribeiro, factos passíveis de integrarem ilícitos disciplinar e criminal no efetivo exercício das suas funções; e que na sua qualidade de testemunha, Rui Mota confirmou, de forma inequívoca, os factos denunciados”.
Ao não pedir escusa, continuam os investigadores, o arguido violou “os deveres de isenção e imparcialidade que lhe são exigidos e exigíveis no exercício das suas funções de chefia da guarda prisional”. E o MP defende mesmo que tinha um propósito: o de prejudicar Rui Mota.