A França voltou a ser campeã do mundo e, por muito pouco burguês que este Mundial tenha sido, continua a não haver lugar para que os mais pequenos ponham as mãos na taça de ouro com que todos sonham.
Uma tarde húmida abraçou o Estádio Luzhniki, cheio como um ovo, para receber a 21.a final de um campeonato do mundo do futebol. Um daqueles calores senegaleses que nos fazem ficar peganhentos, dedos agarrados uns aos outros como acontece com os palmípedes, a puxarem pelos tendões, que isto de cá estar no alto da bancada também exige trabalho, não é somente lá em baixo, na perfeita relva verde. Confesso que de cada vez que assisto a um jogo da França sinto que os melhores três minutos que ele me pode dar se esgotam no “abreuve nos sillons” que indica o fim d’A Marselhesa. Desculpem, mas é algo que me sobra de uma certa tradição republicana.
Se nunca me tinha passado pela cabeça assistir a uma final de um Mundial em que uma das seleções envergasse uma camisola aos quadradinhos (risquinhas há muitas!), já não me surpreendeu o facto de essa equipa, a Croácia, ter aproveitado a ordem do árbitro – que, com um apito solene, lhe abriu a porta do infinito – para avançar sobre um grupo de franceses decididos a, primeiro que tudo, firmarem os pés na consistência do seu sistema defensivo. “Não mais Saint-Denis! Não mais Waterloo!”, pareceu ser sempre o lema de Deschamps nesta competição. Ele que entrou em Moscovo, coisa que nem Napoleão conseguiu.
Neste tipo de jogos, a gente suplica aos deuses da bola, essa mágica senhora das paixões, para que nos atirem, lá do céu ou lá do raio do sítio onde se escondem, um golinho precoce que obrigue ao abandono de qualquer filosofia mais pusilânime. Nem mais! Foi só pedir. E eis que apareceu o autogolo de Mandzukic aos trambolhões na sequência de um livre meio manhoso ordenado pelo señor Pitana, Nestor de batismo, natural de Corpus, Argentina. Murmurei para com os meus botões: “Temos jogo!” E tínhamos. Já os meus botões pareciam dormir. Não percebem nada de futebol. Azar o deles.
Jogo vivo! A reação croata foi formidável. Num lance muito ao género do que dera o golo à França (e dar é o verbo correto), Mandzukic ganhou uma bola alta no local certo, ela andou por ali a ameaçar, e Perisic, com um pontapé bonito e canhoto, colocou as coisas no devido lugar. Afinal, os rapazes de galo ao peito, talvez por darem valor ao bicho, estavam a abusar da sorte até aí.
Um a um: da desgraça dos um a zero e dos zero a zero estávamos livres. Já o árbitro voltou a ser manhoso num penálti com muito de forçado.
Alguém, em cima, não gostou.
Um trovão abanou o Luzhniki, mas não buliu com o sistema nervoso de Griezmann. Dois a um.
E agora, Croácia? Os acontecimentos tomavam um rumo desagradável. Não havia outra forma de responder: que se lixem os acontecimentos! E então os croatas começaram a jogar também contra os acontecimentos. O céu ia resmungando. Para mim, com razão. Não por uma questão de justiça porque essa, geralmente, não vai à bola. Mas, no mínimo, por conta da verdade. Que querem? Embirro com mentiras!
“I gotta feeling that tonight’s gonna be a good night”, cantavam os Black Eyed Peas ao intervalo. Uma noite boa? Para quem? Mais valia o “Kalinka” com os seus zimbreiros e as suas amoras. “Malinka, moiá!”
Nos últimos cinco Mundiais tivemos cinco vencedores diferentes – França, Brasil, Itália, Espanha e Alemanha. Um sexto não se sentiria desconfortável. E vamos e venhamos: a Croácia fazia por isso. Dona França e os seus Galos Negros viam-se e desejavam-se para controlar os movimentos simples e bonitos da sua adversária. Soava como a Serenata de Toselli.
De súbito estávamos metidos num daqueles para-cá-e-para-lá do quilé, como gostava de dizer o Assis Pacheco. Os franceses não se desmanchavam, mas cometiam erros, os croatas batalhavam pela vida, até que dois cretinos de camisa e gravata resolveram fazer cair sobre si as atenções e andaram por ali com seguranças no encalço. Os meus botões acordaram aos gritos:“Para a Sibéria! Para a Sibéria, já!” Não era caso para tanto.
Princípio e fim Curiosamente, os adeptos russos pareciam acreditar mais na Croácia do que os que tinham vindo das margens do Adriático. Foi deles que vieram os primeiros gritos de incentivo, mas Pogba não perdeu tempo a tirar proveito do espaço que começava a sobrar–lhe. Um passe extraordinário para Mbappé, centro para Griezmann na grande área segurar o suficiente para que o mesmo Pogba corresse até à zona da meia-lua e, à segunda, fizesse um golo que acrisolou o coração da França. O maior dos galos negros cantava alto e a horas.
A partir daí, os russos cantavam“Rassia! Rassia! Rassia!” e os croatas desfaziam-se com a fragilidade de um pucarinho de Estremoz. Quando Mbappé, aos 65 minutos, fez o 4-1, era de esperar um massacre. A mesa estava posta.
Mas esperem: Lloris também tem algo para dar e deu: o 2-4. Talvez ainda haja algo para tirar desta Croácia que perde o jogo mas não perde o seu caráter. Estamos a pouco mais de 15 minutos do final e a França reorganiza-se. Muda duas das pedras do centro do tabuleiro – Kante por Nzonzi e Matuidi por Tolisso – com a astúcia xadrezística do grande Tigran Petrossian, o Tigre de Tbilisi. “Não mais Saint–Denis! Não mais Waterloo!”
Entramos agora num outro jogo: um jogo no qual o tempo passa a ter duas noções distintas, dependendo do campo. Para os croatas, ele voa; para os franceses, é lento como um daqueles caracóis que eles gostam de comer “à la bourguignonne”. Seria preciso parar os ponteiros do relógio do señor Pitana e ele tem mais que fazer.
O céu pareceu torto, mas continuou à mesma altura.