Tempos difíceis. Educação, saúde, habitação. Só há geringonça a sério quando houver

Tempos difíceis. Educação, saúde, habitação. Só há geringonça a sério quando houver


A paz social acabou. Uma das maiores vitórias de António Costa com a constituição da geringonça foi envolver a CGTP numa espécie de novo arco alargado da governação. Mas as crises na educação e na saúde ameaçam a solidez da solução governativa, num momento em que dentro do governo já existe quem não a deseje:…


Ao terceiro ano da geringonça, a nação decidiu, pela primeira vez desde o acordo entre PS, BE, PCP e PEV, ocupar as ruas. 

A ‘paz social’, um dos valores mais preciosos para um governo, conseguida à conta do acordo com o PCP, foi-se. A quinta organização da geringonça, a CGTP, abandonou a aliança. Se nos lembrarmos que a CGTP sempre se congratulou com os acordos de esquerda, assumindo sempre o seu papel decisivo para que eles se consumassem – nomeadamente no combate ao governo Passos-Portas – percebe-se bem como tudo mudou. 

Além da deserção da CGTP do novo “arco da governação”, a emergência de organizações de trabalhadores inorgânicas – não enquadradas politicamente – tornou-se ainda mais ameaçador para o governo e revelou um descontentamento profundo e cada vez mais audível, nomeadamente no caso das carreiras dos professores. Foi a nova organização sindical dos docentes, o STOP, a convocar a greve às avaliações. A questão dos professores será crucial para o restabelecimento de alguma harmonia na classe – resta saber como vai o governo chegar a acordo com os parceiros de esquerda para o Orçamento de 2019 numa questão que tanto para o PCP como para o Bloco de Esquerda é decisiva.

Paz e pão há. A geringonça conseguiu recuperar os rendimentos de um grande número de cidadãos que tinham sido cortados pelo governo anterior. Só que paz e pão não chegam. Já dizia Sérgio Godinho nos idos 70 do século XX: a paz, o pão, educação, saúde, habitação… E nestes três últimos pontos a situação está gravíssima. Embora seja verdade que este governo deu mais dinheiro à saúde que o governo anterior, fez mais contratações, etc. o caos no Serviço Nacional de Saúde não tem fim à vista. As demissões de diretores de serviço em grandes hospitais sucedem-se, por falta de condições. E este é um ponto de conflito enorme dentro dos partidos que apoiam o governo. 

A divergência é evidente quando se sabe que o Bloco de Esquerda apresentou uma nova lei de bases da Saúde, da autoria do histórico coordenador bloquista João Semedo e do presidente honorário do PS, António Arnaut, que faleceu recentemente. A lei é uma defesa do Serviço Nacional de Saúde e tem como contraponto o projeto que o governo encomendou a Maria de Belém, mais defensor da intervenção dos privados. Dentro do PS, acredita-se que é possível chegar a um consenso que não obrigue numa questão estruturante como a saúde os socialistas ensaiarem já um bloco central.

 A questão é que, como disse Marques Mendes no seu último comentário na SIC, na prática existe um bloco central informal o que necessariamente perturba as negociações do orçamento e a relação com a geringonça. A opção do ministro do Trabalho, José António Vieira da Silva, de aprovar um acordo de concertação social, fazendo cedências não acordadas com os partidos de esquerda, na prática institucionalizou esse bloco central informal: quem iria, se não o PSD, aprovar as alterações laborais acordadas em sede de concertação social?

Só que não foi só os parceiros de esquerda que Vieira da Silva ignorou. O presidente do PS e líder parlamentar, Carlos César, também foi apanhado de surpresa. Depois de 16 anos como presidente do Governo Regional dos Açores, Carlos César não gostou de ser tratado como uma espécie de “ajudante” do ministro. Decidiu que o grupo parlamentar iria apresentar propostas de alteração, embora com a garantia de não desvirtuar o acordo. E como sobrevive a geringonça a uma legislação laboral ainda totalmente influenciada pelas imposições da troika? Há quadraturas do círculo, evidentemente, mas esta não é simples. 

A especulação imobiliária crescente nos centros de Lisboa e Porto levou o PS a apresentar uma lei de bases sobre habitação ainda em discussão pública. Mas a verdade é que não há casas para alugar a não ser a preços incompatíveis com os salários médios nacionais. Se o governo aprovou o travão aos despejos a maiores de 65 anos e deficientes – lei promulgada pelo Presidente da República – a verdade é que a famosa “lei Cristas” continua em vigor.

O governo faz três anos em novembro e não mexeu uma palha enquanto o próprio primeiro-ministro e outros altos dirigentes do Partido Socialista continuam inexplicavelmente a culpar Cristas.

Sem educação, saúde e habitação como garantir o sucesso da nação e da geringonça que a governa? Os números do défice glorificados em Bruxelas, a queda abrupta da taxa de desemprego – ainda que a maioria do emprego criado seja precário e mal remunerado – e a recuperação de rendimentos e feriados não chegam. 

O estado da nação é agora de um evidente descontentamento em vários setores, ainda que o PS continue à frente nas sondagens, embora a maioria absoluta neste momento pareça um objetivo difícil de atingir. As eleições para o Parlamento Europeu – mais do que o debate que hoje decorre no parlamento – servirão para medir o pulso à nação. Se nos lembrarmos que António José Seguro foi afastado do PS por ter conseguido só ter 31% nas eleições europeias – a tal vitória “poucochinha” como lhe chamou Costa – e que Durão Barroso voou para Bruxelas depois de ter sido derrotado nas europeias de 2004 por Ferro Rodrigues, apesar do PS estar a ser fustigado pelo processo Casa Pia, entende-se que as eleições tradicionalmente pouco participadas não deixam de ter uma influência política relevante no estado da nação. 

Ontem, o país acordou surpreendido com o facto de o número 2 do governo, Augusto Santos Silva, ter colocado uma fasquia impossível para a repetição da geringonça – um acordo político sobre a Europa, na entrevista que deu ao “Público” e à Renascença. Costa acalmou as críticas internas acabando por desautorizar o seu número 2. Há um mal-estar difuso na solução de governo. A nação é valente, mas a geringonça não é imortal.