Walk and Talk.  E a ilha fez-se espaço aberto

Walk and Talk. E a ilha fez-se espaço aberto


Não mais ponto final, a ilha é agora ponto de partida. Assim viu São Miguel Dani Admiss, curadora convidada pelo Walk&Talk, nos Açores, para comissariar o circuito de arte pública na sua oitava edição. O resultado está por toda a ilha em “Assembling a Moving Island”. Uma espécie de exposição a céu aberto


“Não me leve a mal. Quem descobriu o Brasil não foi Cabral.” No Brasil, seria funk; em São Miguel, são os versos de MC Carol que viram mensagem política em cartazes que ora recuam ainda mais, a 1415, ora avançam no tempo – e, já que estamos aqui, a 2003, por exemplo. Entre o que pretende celebrar o Padrão dos Descobrimentos e Tony Blair na Cimeira das Lajes, na Terceira, passaram quase seis séculos. Desse ano em que se decidia a guerra no Iraque até hoje, foram 15. Na mesma lógica que os acontecimentos, também cartazes, os cartazes que Luiza Prado e Daniel Rourke vieram afixar em três pontos desta ilha num projeto a que chamaram “Atropelos”.

No Farol do Arnel (37.823286, -25.136025), nos Mosteiros (37.888857, -25.824559) e em Santa Clara, Ponta Delgada (37.734193, -25.682590), coordenadas entre parêntesis que um cartaz é bem coisa para se perder por uma ilha. Ou não. Na verdade, tudo isto estará online, num projeto que seguirá com cartazes a partir de cartazes, no processo que foram desenhados estes. Mais claro: ao deslocarem-se de um local para o outro, os artistas transportaram parte das imagens e das palavras coladas no local anterior, e foi sempre essa a base para a intervenção seguinte. 

Interessou-lhes a forma como tanto estas ilhas dos Açores como as da Madeira foram laboratórios para acontecimentos históricos ao longo dos tempos. A ideia de laboratório que procurou explorar a curadora independente e investigadora de Londres Dani Admiss, que o Walk&Talk convidou para comissariar o circuito de arte pública da sua oitava edição, que decorre até 14 de julho em São Miguel. 

Quando, antes do início do festival, Admiss aterrou em São Miguel, aterrou para explorar uma ilha que nunca tinha visto. “Fiz uma pesquisa sobre como a ilha tem sido tratada ou olhada na cultura, na ciência e na História, e interessei-me muito por esta ideia da ilha como laboratório.” Espécie de “laboratório natural”, pela óbvia barreira física e, por isso, também ponto final. Um ponto “fixo, isolado”, mas também utopia. E vem depois Dani Admiss com uma proposta de exercício só possível para quem vier de fora: “Do insular romance fantástico do séc. xii de Ibn Tufayl à natureza imaculada e frágeis ecossistemas das Galápagos, as ilhas ocuparam uma zona no limite da nossa imaginação, fascinando pela sua plenitude e isolamento de outros territórios.” E questiona: porque encaramos a ilha como território fechado?

“Assembling a Moving Island”, circuito de arte pública do Walk&Talk de 2018, partiu então da desconstrução da fatalidade para uma nova pergunta: e se olhássemos a ilha como espaço aberto? Não mais ponto final, mas ponto de partida. Que também poderá ser, reconhece Jesse James, diretor do festival a par de Sofia Carolina Botelho, durante a conversa de apresentação do circuito de arte pública, no arranque do festival, em Ponta Delgada. Regressando à ideia de MC Carol, lembra Admiss que as ilhas não foram “descobertas”, antes “continuamente refeitas” por processos de conquistas ou migrações, pelos meios de comunicação de massas, pelo comércio, pela ciência, pelas viagens.
Entre os já terminados e os que continuam em curso enquanto decorre o festival, são então seis os projetos e as obras assinados pelos artistas convidados por Admiss para este “Assembling a Moving Island”, em que Jesse James identifica um, mais um, ponto de viragem para um festival que, desde 2011, se faz em metamorfose, em evolução constante. “Quando decidimos fazer um festival de artes em São Miguel, o que pensámos foi que tínhamos de ocupar o espaço público. Tínhamos conhecido o Vhils, ele veio cá, e o resultado dessa edição foram 20 murais espalhados pela cidade.” 

Na edição do ano passado, de murais havia já apenas um, em Rabo de Peixe, pelo espanhol SpY, e apenas para uma frase: “No more walls.” “Começámos a olhar para outras formas de ocupar o espaço público, de criar uma memória coletiva e, mais do que isso, de uma ideia de um circuito de arte pública performativo que permitisse ao público ser parte, interagir com as obras.”

E murais podem não ser já o foco do Walk&Talk, mas nesta edição há novos artistas a regressarem às paredes. Sejam Prado e Rourke com “Atropelos”, seja Navine G. Khan-Dossos com “Georgiana”, ao longo do muro do porto de Ponta Delgada com o alfabeto marítimo tradicional, num conjunto de bandeiras de sinalização marítima para soletrar “Georgiana Leonard”, numa homenagem à mulher que, no séc. xix, foi descoberta disfarçada de marinheiro a bordo de um baleeiro que cruzava o Atlântico. 

Ou então nada disso, e algo completamente novo, uma vez mais. Depois de, no ano passado, Ricardo Jacinto ter ocupado o coreto do Campo de São Francisco, em Ponta Delgada, com uma instalação sonora, os Shift Register (Jamie Allen e Martin Howse) apresentam no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, “Eye Land Band Width – When the Earth Whispered”. Recorrendo à interferometria, método de mapeamento de ondas cósmicas usado na física para medir pequenas alterações, “Eye Land Band Width” são duas cabinas instaladas no arquipélago que permitirão, através de lasers e espelhos, medir a atividade sísmica da ilha para nos questionar sobre a capacidade e as limitações dos humanos para sentir o mundo.