O final de 1919 assistiu à justa consagração universal de Albert Einstein como sendo um novo Copérnico ou, talvez com mais propriedade ainda, um novo Newton. Nos anos imediatos, o físico empreendeu uma série de viagens de longo curso. Assim, em 1921 foi recebido nos Estados Unidos como uma verdadeira celebridade, tendo tido uma receção que roçou por vezes o apoteótico entre a comunidade dos judeus norte-americanos.
No ano seguinte iniciou uma viagem de cerca de meio ano ao Extremo Oriente a convite de uma casa editora japonesa. Após atravessar o Mediterrâneo e o Índico, visitou Colombo (Ceilão), Singapura, Hong Kong e Xangai e, finalmente, uma série de cidades japonesas onde proferiu bem remuneradas palestras, o verdadeiro móbil da viagem. As vantagens financeiras da viagem resultaram significativamente acrescidas por ela ter coincidido com o período de inflação descontrolada do marco alemão. O então recente assassinato de Walther Rathenau (24.6.1922), ministro dos Negócios Estrangeiros da República de Weimar e judeu destacado, não terá sido alheio ao desejo de Einstein, também ele apontado como uma vítima potencial da extrema-direita, de se ausentar durante aqueles conturbados meses da vida pública alemã.
No caminho de regresso à Europa, Einstein visitou a Palestina, onde lançou a pedra fundadora da Universidade Hebraica de Jerusalém, que é hoje a legatária do seu espólio pessoal e científico. Por fim, uma estadia de duas semanas em Espanha remataria o seu longo périplo em março de 1923.
O regresso de Einstein à península Ibérica estava reservado para dois anos mais tarde, quando efetuou uma escala de algumas horas no porto de Lisboa (11.3.1925) a caminho da América do Sul – sobre ela escrever-se-á noutra ocasião.
Ora, com germânica meticulosidade, o grande Albert assegurou um diário de viagem onde anotou as impressões da sua estadia de seis meses fora da sua bem-amada Europa – frise-se bem esta dileta eleição, pois difícil será descobrir um espécime tão refinado de homem culto europeu como Albert Einstein. Assim, o cientista não perdia a oportunidade de integrar, quando possível durante as suas viagens, agrupamentos de câmara onde, tipicamente, assegurava a parte de segundo violino em quartetos de cordas de Mozart – a tão alemã tradição da Hausmusik estava nele bem arreigada. Quando da referida visita a Espanha deslocou-se por três vezes ao Museu do Prado. A sua lista de leituras para as longas viagens por paquete eram vastas e ecléticas – isto para não referir a reconhecida virtuosidade em física teórica, onde a sua estonteante intuição se fundamentava em argumentos epistemológicos, arreigados estes, por sua vez, na familiaridade com a grande tradição da filosofia ocidental. Resumindo: chegado ao Oriente há quase um século, Albert era o epítome do europeu, não arrogante, mas serenamente consciente de representar uma cultura superior face a uma China atolada na anarquia e a um Japão que tentava seguir os compassos da modernidade lendo-os, diligentemente, da pauta ocidental. O seu ego recebera também um recente bónus: logo no início do seu périplo fora brindado com o Prémio Nobel da Física para o ano transato de 1921.
Feito este enquadramento, abra-se então o diário de viagem do grande físico [”The Travel Diaries of Albert Einstein – The Far East, Palestine, and Spain, 1922 – 1923”, Princeton University Press, 2018]. E eis que para o conhecedor superficial da personalidade de Ein-stein, mais disponível, portanto, para nele reconhecer um verdadeiro santo laico e para idealizá-lo como símbolo da tolerância universal, estavam reservadas algumas surpresas: em vinheta após vinheta, o ocidental regista no seu diário aceradas observações sobre os seus anfitriões no Extremo Oriente. E estas observações estão escandalosamente distantes do politicamente correto que hoje se esperaria de um universitário em terras distantes.
Nas palavras de Einstein, os chineses são considerados “industriosos, sujos e obtusos”, comportando-se “mais como autómatos do que como pessoas”. Professores portugueses asseguram a Ein-stein que os jovens chineses revelavam uma incapacidade notória para o pensamento abstrato, informação que não é rebatida ou mesmo comentada pelo físico.
Einstein aponta também em termos apreciativos a pureza racial da diminuta comunidade israelita de Hong Kong. É claro que o cientista Einstein nunca poderia fechar os olhos à evidência perene da superabundância de talento intelectual na pool de genes preservada entre muitas das comunidades de israelitas – eis um facto tanto mais difícil de explicar quanto mais queiramos manter-nos politicamente corretos. Mas um pouco de autocensura, neste como em tantos outros casos, pode ter algo de salutar. Certas verdades propaladas com demasiada estridência podem fazer mais mal do que bem.
Note-se que Einstein foi aqui a vítima da sua própria meticulosidade, pois as frases escritas num diário podem ser tão embaraçosas como cartas de amor – têm qualquer coisa de íntimo que sofre à exposição da luz crua da observação por estranhos. Para além disso, a fama de Einstein é tal e tão bem alicerçada no seu prestígio intelectual que qualquer aforismo seu, qualquer juízo, qualquer opinião são ponderados e degustados com curiosidade acrescida.
Registem-se também as datas nas folhas do diário de Einstein, escritas quando Adolf Hitler ainda era ainda um desconhecido na política alemã – o putsch da Cervejaria de Munique só ocorreria a 8-9.11.1923, mais de meio ano após o final da viagem. Reconheça-se que o vincar da posição política do físico foi muito condicionado pela tomada do poder pelos nazis (30.1.1933) e, em particular, pelo feroz antissemitismo do movimento que, em crescendo, estaria na origem, uma década mais tarde, de crimes difíceis de conceber.
Mas os horrores da Guerra Total e do Holocausto foram provocados em boa medida pelo exacerbamento de teorias raciais, elas próprias excrescências malignas do darwinismo, uma teoria cientificamente válida. A bomba nuclear – a outra face de Jano da física teórica, ciência que tão fulgurantes avanços havia tido desde o início do séc. xx – toldou as perspetivas para a humanidade.
Einstein, que em 1945 alerta para tais ameaças, tem 66 anos de idade e irá viver a última década da sua vida longe da ribalta, que o tinha de alguma forma cativado durante a década de 1920. Curiosamente, a imagem do grande cientista que se impôs junto do grande público é a do Einstein idoso, com traços marcados e olhos melancólicos, encimados pela inconfundível cabeleira, tornada branca e menos revolta. O brilho algo irónico e desafiador da juventude desaparecera do seu olhar, tornado menos perscrutador, mas mais sábio. A melancolia da terceira idade atenua muitas arestas e, assim, não é inconveniente que o rosto do Einstein outonal – é notável como ele envelheceu tão precocemente – se fixe na nossa memória como, das duas faces de Jano da ciência, aquela que vela auspiciosamente sobre a humanidade.
Mas a surpreendente faceta, mais eurocêntrica do que xenófoba, no diário de Einstein tem relevância suplementar para a atualidade. Presenciámos nos últimos dias, quando da última cimeira europeia em Bruxelas, como o problema dos refugiados e da imigração descontrolada vinda de fora da Europa dominou quase totalmente a agenda política. É um problema grave, cuja solução dispensa angelismos e que deve ser tratado com mão firme mas não desumana. Os comentários de Ein-stein feitos há quase um século são um alerta para os limites da tolerância na aceitação do homem de etnia e de civilização diferentes.
Na bem conhecida parábola do Bom Samaritano (Lucas, 10, 25-37), Jesus refere, em resposta à questão “quem é o meu próximo?”, a seguinte história. Um samaritano, tendo-se apiedado de um homem caído nas mãos de assaltantes e deixado meio morto, cuidou- -lhe das feridas e levou-o até uma hospedaria sobre a sua própria montada. No dia seguinte, o samaritano desembolsou dois denários para que o estalajadeiro continuasse a cuidar do ferido, prometendo-lhe mais, se necessário, quando voltasse. Jesus não refere na sua parábola que o bom samaritano tivesse levado para a sua própria casa a vítima dos salteadores.
Transpondo-nos para a atualidade: que os dois denários desembolsados pelo bom samaritano correspondam a um comércio internacional mais justo, que possibilite às populações não europeias viverem condignamente nas suas terras. Não será fácil, mas há que tentá-lo, para que não se criem problemas irresolúveis para o futuro. Porque, para anticristos, Hitler, no séc. xx, já nos bastou. E, em remate, lembre-se como o próprio Einstein foi obrigado a abandonar para sempre a sua velha e bem-amada Europa em 1933, na sequência da ascensão de Hitler ao poder.
Professor universitário