Antes. Melancolia é um dinossauro

Antes. Melancolia é um dinossauro


A partir de Istambul, Pedro Penim viajou no tempo para a construção de um atlas da melancolia – em Portugal, saudade, e cada povo terá a sua. Para a compreender, é preciso andar para trás, perguntar “e antes?”. No Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, “Antes” foi um dos espetáculos que marcaram a abertura do Walk&Talk


Onde dói? Talvez seja difícil responder, e talvez por isso se vá adiando a resposta. Talvez seja o lamento a única forma de aliviar a dor. Lamento pelo que foi e já não é. Saudade? Pode ser. Sentimento de melancolia, de certeza. Só que épocas douradas talvez não existam, talvez nunca tenham existido, sugere Pedro Penim em “Antes”. Um atlas da melancolia que construiu, num espetáculo do Teatro Praga, a partir de Istambul e com viagens no tempo. Sempre para trás, a recuar, que as explicações para o presente estão sempre nesse lugar mais ou menos vago a que se chama “antes”.

“Dói-te porque dói”, diz Pedro Penim sobre a melancolia de todos os “lugares que podiam ser Portugal, de tão afundados numa dolorosa saudade do passado.” “Depois vais tentar perceber porque é que dói. Quis combinar isso com algo que é mais universal, que é essa tendência para pensarmos que no passado estávamos melhor do que estamos agora, para ver o passado por uma espécie de filtro do Instagram onde todas as coisas parecem mais bonitas e mais cor-de-rosa do que foram na verdade.”

De Istambul ao Al-Andalus Quando, há mais de dois anos, Pedro Penim se mudou para Istambul, comprou um guia da cidade que abria com um texto sobre o Hüzün. Uma espécie de saudade sem ser bem. Sentimento “difícil de traduzir”, mas que poderá explicar-se como uma “melancolia aguda coletiva” que vem do viver entre as ruínas do passado. “A saudade é mais maleável, o Hüzün é mais específico daquela cidade, só se pode sentir naquela cidade e tem a ver com essa ideia de quando estás a andar na cidade veres momentos e veres edifícios que te relembram que aquilo teve uma outra história que não aquilo que estás a viver agora. E és constantemente relembrado desse facto, és confrontado com isso o tempo todo.”

“Na Turquia há sempre um acontecimento, há sempre coisas para discutir, mas a viagem é sempre para o passado. Diziam-me sempre: para perceberes o que está a acontecer agora, tens de perceber que há dez anos aconteceu isto, mas antes aconteceu isto, e antes aconteceu isto, e antes…”

Antes disto. De agora, 2018? Do Teatro Micaelense nesta noite em que, no fim de semana de abertura do festival Walk&Talk, “Antes” é apresentado pela primeira vez nos Açores? Antes, quando? Antes de uma crying party, e uma crying party é mesmo o que parece, em Los Angeles, em 2016? Será daí que dói? De quando chegaram os primeiros vídeos do ISIS a cortar cabeças? Talvez. Ou talvez seja de antes. Antes disso.

Por mais que a reclamemos como nossa, a melancolia é universal, afinal. Do Hüzün de Istambul, Penim partiu para a Tristesse em que se transformou Trieste, cidade que se arrasta “num limbo moribundo” desde que, em 1914, por ali passaram os corpos dos arquiduques assassinados do Império Austro-Húngaro, no acontecimento que deu início à i Guerra Mundial. Para Gales, que significa “lugar dos outros”, assim batizada pelos invasores que fizeram dela a primeira colónia do Império Britânico em 1285. Até ao Al-Andalus para a história de dois poetas amantes da península Ibérica dominada pelos árabes em que um acaba morto pelo outro.

E recuamos, através desta conversa que poderá ser uma sessão de terapia regressiva – o dinossauro e o terapeuta – ou só uma conversa entre amigos. Ou amantes. Ou nada disso, apenas construção ficcional, porque talvez o dinossauro e o interlocutor que vai puxando o fio em direção ao “antes”, o “antes disso” até chegar ao “antes de tudo” – ou o fim que veio antes disso – seja apenas uma pessoa. Pedro Penim?

“As personagens acabam por vir de um diálogo interno meu. Duas vozes que tenho na cabeça e que acho que toda a gente tem nessa ideia do quem me dera poder voltar a quando tinha não sei quantos anos, a uma altura em que fui feliz, ao mesmo tempo em que vem uma outra voz dizer ‘vive o presente, isso é só uma ilusão’. Quis materializar essas duas vozes e depois, numa fase mais avançada do processo, decidi que seria eu a fazer as duas vozes e que haveria duas personagens que estão ali a representar esses dois extremos, com um que está ali no meio – literal e metaforicamente –, que sou eu.”

É Pedro Penim, que escreveu e dirige e faz as vozes deste texto que se constrói de trás para a frente. Da décima cena para a primeira que, depois de tudo, virá lembrar-nos que um dia seremos nada. Com sorte, ossos fossilizados depois, ou antes, de uma tempestade de neve.