Oh diabo, o melhor é chamar a polícia!


Nem vale a pena dizer a Miguel Relvas que é um elogio comparar Rui Rio a Alexandre o Grande, da Macedónia, que foi quem desfez o mítico nó górdio. Sabe-se que o conhecimento da História, tal como a cultura em geral, nunca foi manifestação habitual no interior – e no exterior – do PPD-PSD de…


Há três anos, quando o PS formou governo, a expectativa inicial da direita era, como se sabe, a da irrupção de Belzebu em socorro da pátria e da República, com a infernal criatura a desfazer a diabólica teia socioeconómico-financeira irresponsavelmente tecida por um governo sustentado pelos partidos do “esquerdalho”, com maioria absoluta no parlamento. Seria um diabo claramente Sebastião, de tal modo era “o desejado” pelas carpideiras da direita, sobretudo as que choravam baba e ranho aos comandos do PPD-PSD. Mas lá foram passando os dias, as semanas, os meses, os anos e, quanto ao tão desejado Belzebu, moita carrasco! Enfim, um fiasco!

Veio então o fogo na floresta, cuja acção devastadora, incentivada por condições climatéricas excepcionais e por incendiários filhos de grandes pecadoras, acabou por ceifar mais de uma centena de vidas humanas. Havia a tradição, oriunda do tempo da outra senhora, de as oposições não terem por hábito precipitar–se a retirar dividendos políticos de desgraças destas. Todavia, na imperdoável ausência de Belzebu, que se baldou indecentemente aos apelos duma direita sedenta de austeridade descomunal, de vampirismo salarial e de demolição económico-social, o Presidente Marcelo vestiu-lhe a pele – não sem antes ter abraçado com emoção um secretário de Estado lavado em lágrimas e ter declarado urbi et orbi que tinha sido feito “tudo o que era possível fazer” para debelar as chamas do inferno. E se “tudo tinha sido feito”, não havia mais nada a fazer… 

Ah, mas afinal não era bem assim, sobressaltou-se o PR Marcelo, já na pele de Belzebu! Havia responsabilidades graves, sim senhor. Exclusivamente atribuíveis a este governo. E não partilháveis. Nem com os tais incendiários filhos de grandes pecadoras, nem com as excepcionais condições climatéricas, e ainda menos com os briosos soldados da paz (com os quais foi um fartote de efusivos abraços). Afinal, Marcelo era o Belzebu pelo qual a direita ansiava e o fogo era o grande polarizador da luta contra o “esquerdalho”!

Foram surgindo então, como cogumelos, “atiça-fogos” ao serviço da direita, estimulados pelas malévolas sugestões do Belzebu Marcelo, ansiando todos eles – jornalistas, comentadores e políticos – pelo desencadear de mais fogos trágicos em 2018, que seriam, enfim, o grande pretexto para o Presidente Marcelo cortar pela raiz esse mal imenso que o “esquerdalho” tem estado a fazer à direita, perdão, à pátria e à República, ludibriadas e vilipendiadas pelos maçaricos que arribaram a São Bento há três anos. Ora, como se sabe, a direita tem essa estranha mania antidemocrática de que só ela é que dispõe da legitimidade natural para exercer o poder temporal. E, quando às vezes o perde, o regresso ao poder não pode tardar, sob pena de o povo ignaro, iludido pelo “esquerdalho”, se pôr a viver acima das suas possibilidades – obviamente miseráveis!

Como o fogo trágico ainda não veio, e o que veio ainda não matou vivalma, a direita pôs-se a aplaudir greves e sindicatos, mesmo os comunistas que ela tanto odeia, na presunção de que tudo o que vem à rede é peixe. Alguns dos seus comentadores encartados começaram mesmo a falar e a escrever em nome dos portugueses – que querem isto, mas não querem aquilo e exigem aqueloutro -, sem que se perceba muito bem onde foram eles buscar essa legitimidade para serem porta-vozes do povo. Eu, por exemplo, sou português e nunca os autorizei a falar ou escrever em meu nome.

O desespero da direita a que temos direito é de tal ordem que já está a recorrer ao insulto, à difamação e à calúnia. 

Segundo um distinto escrevinhador do PPD-PSD com legitimidade municipal, mas que costuma falar em nome d’“os portugueses”, o “esquerdalho” que sustenta este governo não passará, afinal, de um conjunto de adeptos do “assalto democrático”, seja lá isso o que for, que tem o país “refém dos caprichos das esquerdas” (risos!), a viver “à pendura das reformas do passado e da conjuntura internacional” (risos!), “esperando que a situação política na Europa não exponha o disfarce” que constitui a “gestão corrente mascarada de milagre económico” (risos hilariantes!) que tanto mal tem feito à pátria e à República. Mais acha ele que “a inutilidade tacticista da solução de governo”, revelada pelo debate em torno do OE de 2019, demonstra que “a autoproclamada autossuficiência da esquerda parlamentar foi um embuste”. Em suma: Portugal há três anos que vive à mercê de embusteiros, farsantes, penduras, mascarados e assaltantes de esquerda. E ninguém exclama: oh diabo, venha de lá a polícia para levar de cana todo este “esquerdalho” e pô-lo no xilindró!

Claro que o pior cego é aquele que não quer ver o mal que vai pela própria casa – com telhados de vidro – e se põe a atirar pedras aos telhados dos vizinhos. Mais: o cego do PPD-PSD ainda se permite atacar com estúpidas graçolas um dos mais distintos militantes do seu partido, Silva Peneda, chamando-lhe “alma peneda” por ser “companheiro de estrada e oráculo de Rui Rio”, cuja vitória eleitoral para a presidência do partido ainda não conseguiram engolir. 

Mas vejam bem como eles andam tão desencontrados, cada qual a falar para seu lado. E nem sequer me refiro à recente abdicação de Santana Lopes e à sua enésima ameaça de criar outro partido. Não é preciso. Refiro-me, sobretudo, ao que diz o comentador municipal supracitado – ao profetizar que “daqui a Outubro de 2019, o governo do PS ficará progressivamente a falar sozinho no parlamento”- e ao que diz o incontornável Miguel Relvas – quando esclarece que “o PS tinha um nó górdio, por ter vendido a alma à extrema-esquerda, e a primeira coisa que o líder do PSD fez foi resolver-lhe o problema”. Em que ficamos? Será que não conseguem entender-se? Claro que nem vale a pena dizer a Miguel Relvas que é um elogio comparar Rui Rio a Alexandre o Grande, da Macedónia, que foi quem desfez o mítico nó górdio. Sabe-se que o conhecimento da História, tal como a cultura em geral, nunca foi manifestação habitual no interior – e no exterior – do PPD-PSD de Passos Coelho.

A austeridade era muito abrangente nas fileiras desse governo de tão má memória que castigou o país e o povo durante cinco anos. Mas todos os seus membros e apoiantes já nem se lembram que a promessa original de Passos Coelho era a de “empobrecer o país e os portugueses” rapidamente e em força, para depois voltar a haver crescimento e riqueza. De facto, todos eles se habituaram de tal modo à austeridade, à criação de pobreza, à tentativa de demolição do Estado social, ao assalto aos salários e às pensões e a outras tantas malfeitorias políticas, financeiras, económicas e sociais que já nem concebem que se possa e deva governar a bem do país e da grande maioria da população, tão causticada por vários anos de austeridade. Por isso se revoltam contra a esquerda e tratam o PS, este governo e os partidos que o sustentam na AR como casos de polícia. Insisto: oh diabo, então o melhor será chamar a polícia, não acham?! Ou preferirão, em alternativa, mais incêndios?

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990