Não se pode dizer que exista, por entre os russos, um lamento coletivo pela despedida bisonha da mazomba Alemanha que se apresentou neste campeonato do mundo. Entre ambos os povos há motivos que cheguem para que a simpatia pró-germânica não abunde aqui. Os jornais de ontem limitaram-se a reportar as ondas de choque ecoando de Berlim, e até usando expressões alemãs como “Große Schande”, a Grande Vergonha, sublinhando que, pela primeira vez, uma seleção da Alemanha foi eliminada na fase de grupos, coisa que nem à antiga República Democrática acontecera na única vez que se qualificou, em 1974. O escárnio também não se fez esperar: tal como em 1942, os alemães não chegaram a Moscovo. Chegar até chegaram, já que no encontro inaugural do grupo F defrontaram o México no Estádio Luzhniki, mas voltaram a não se dar muito bem, perdendo por 0-1.
Habituámo-nos demais à frase de Gary Lineker mil vezes repisada: “O futebol joga-se com 11 contra 11 e no final ganha a Alemanha.” Pode ter sido muito assim, mas nunca foi bem assim. Ninguém retira aos alemães as suas extraordinárias oito finais de campeonatos do mundo, com quatro vitórias, somando ainda quatro terceiros lugares e um quarto. As contas são fáceis de fazer: em 19 presenças, a Alemanha chegou por 13 vezes aos quatro primeiros lugares. “Putz!!!”
Se nos recordarmos que, por causa das duas Grandes Guerras, a Alemanha não participou nos Mundiais de 1930, o primeiro, no Uruguai, e de 1950, no Brasil, só uma vez saiu de prova de forma mais macambúzia do que esta, em 1934, em França, despachada logo na primeira eliminatória (16 equipas jogavam em eliminatórias diretas até à final) pela Suíça, 1-1 após prolongamento no Parque dos Príncipes e desempate no mesmo local, dois dias mais tarde, 9 de junho, com derrota por 2-4. Era uma Alemanha com ombros largos para aguentar ódios rusticanos, já que, por via do Anschluss, englobava à força jogadores austríacos.
Grito de liberdade! Foi em 1954, cumprido o banimento que a deixou fora da competição organizada pelos brasileiros em 1950, que a Alemanha, já como Alemanha Ocidental ou República Federal Alemã, se tornou dona do mundo do futebol contra todas as expetativas. No filme de Reiner Werner Fassbinder “O Casamento de Maria Braun”, a voz de Herbert Zimmermann, o mais popular radialista alemão, ficou registada para todos os porvires: “Schäfer nach innen geflankt… Kopfball… Abgewehrt. Aus dem Hintergrund müßte Rahn schießen… Rahn schießt! Tor! Tor! Tor! Tor!” (Schäfer faz o centro… cabeçada… a bola é cortada. Rahn chuta de longe. Golo! Golo! Golo! Golo!”
Segue-se um silêncio angustiante de quase dez segundos.
E depois: “É golo da Alemanha! A Alemanha ganha por 3-2. Chamem-me maluco! Chamem-me louco!”
A Alemanha era campeã do mundo pela primeira vez à custa da fantástica Hungria de Puskás, Czibor, Hidegkuti, Kocsis e Bozsik e com a qual perdera na fase de grupos por 3-8.
Zimmermann fora major da Werhmacht e não colhia unanimidades. Mas o seu grito de “Tor! Tor! Tor! Tor!” tornou-se, de certa forma, uma espécie de grito de liberdade. Era como se o povo alemão tivesse reconquistado o direito de voltar a existir.
Seria preciso esperar mais 20 anos por nova vitória num Mundial. Em 1974, em Munique, na final com a Holanda que arrancou um penálti aos 12 segundos de jogo após 13 passes sem que um jogador alemão tocasse na bola. Até lá, só em 1962, no Chile, ficaria fora dos primeiros quatro, eliminada pela Jugoslávia nos quartos-de-final. E, daí para cá, só os Mundiais dos Estados Unidos (1994, perdeu com a Bulgária nos quartos-de–final) e de França (1998, eliminada na mesma fase pela Croácia) correram menos bem aos alemães. Nada dava a entender esta queda no abismo, ainda por cima quando há um ano, com uma equipa bastante rejuvenescida em relação à que fora campeã no Brasil (com aqueles abracadabrantes 7-1 ao Brasil), venceu a Taça das Confederações com uma perna às costas.
Despede-se da Rússia uma Alemanha cinzenta. Bateu de frente contra a astúcia de equipas menores. E contra um sempre presente complexo de superioridade que é base de uma idiossincrasia muito particular. Poucos são os que o lamentam.